quarta-feira, 31 de julho de 2019

O CORPO SEM ÓRGÃOS É UM FANTASMA



O CsO nasce da capacidade de se abrir para novas sensações, novas disposições. Organizações que não nos deram previamente. Cabe a pergunta, O QUE ME CONVÉM?

Todas as possibilidades são consideradas, tudo que foge à vida anestesiada, tudo que desfaz o entorpecimento da rotina, tudo que produza intensidade, tudo que gere novos agenciamentos, organizações, aumento da potência, MAIS POESIA! Seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu na verdade do ser. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação poética. Encontrar seu corpo sem órgãos, saber fazê-lo, é construir o Anthakarana, uma questão crucial do astral. ''É o mundo da criação direta que é recuperado desse modo, mais além da consciência e do cérebro'', como disse Artaud. ''Juventude, velhice, tristeza, alegria, etc. É aí que tudo se decide” (Gilles Deleuze) 

Deleuze e Guattari tematizam o corpo sem órgão entendo-o como um lugar ocupado, povoado por intensidades, no qual apenas tais intensidades passam e circulam; não é uma cena, nem um suporte onde aconteceria algo, É UM FANTASMA, não tem nada a interpretar, é volição pura da cena do Aleph. Há aparências de contradição, mas o corpo sem órgãos carrega regiões que pulsam, passa por intensidade, é intensivo, não extenso. Não é um espaço, nem está nele, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau, até tornar-se um índice da carne correspondente às intensidades produzidas, mas sobre tudo aos níveis de atenção alcançados em cada ato. Não há intensidades negativas ou contrárias, nessa composição matéria é igual à energia. A palavra poética erige-se, originariamente.


Atribuem a Artaud um movimento de desterritorialização, combatendo as restrições aos sentidos, prisioneiros das amarras de uma razão inventora de significados, que cunhou um sujeito promotor de uma subjetivação destinada a preservar as ordens das coisas, que se curva ao juízo de valores. O corpo sem órgãos se faz como devir, bloco de sensações, agenciamentos que se ramificam no desejo, asseguram conexões contínuas, correspondem às ligações transversais, volição que atua nas linhas paralelas, entre a brusca sacudida reanimadora do tháumazein e nosso entendimento. Citações, adaptações erigem-se, a palavra poética adapta, cita e erige-se.

KM


por que um arauto consagrado da fenomenologia – ciência da essência das coisas manifestas por si mesmas e em si mesmas – tornou-se pensador do oculto, do não objetificável, mesmo do não dizível, e que, paradoxalmente, erige obras ao oculto, desocultando-o dessa maneira?



os 34 "Cadernos pretos" – redigidos entre 1931 e 1948, e posteriormente revistos –, assim denominados pelo próprio Heidegger, que os envolvia em capas pretas, talvez para indicar a si mesmo, e posteriormente aos outros, que se tratava de pensamentos obscuros de um Heidegger obscuro, tal como Heráclito, o Obscuro – alguém que busca luz na escuridão.
Esses pensamentos foram zelosamente resguardados do público durante a sua vida, precisamente por só serem compreensíveis por aqueles poucos convocados a guardar a "verdade do ser" na palavra poética e em obras de arte. As reflexões constantes desses Cadernos, que suscitaram grande atenção recentemente no Brasil e no exterior, trazem, de fato, avisos preciosos para quem aceitar o convite de Heidegger de segui-lo no seu caminho percorrido nos trabalhos da seção III, desde Contribuições.
Como caracterizar melhor essa virada no pensamento de Heidegger? E por que um arauto consagrado da fenomenologia – ciência da essência das coisas manifestas por si mesmas e em si mesmas – tornou-se pensador do oculto, do não objetificável, mesmo do não dizível, e que, paradoxalmente, erige obras ao oculto, desocultando-o dessa maneira? Como é que um professor de filosofia aclamado e disputado pelas melhores universidades alemãs da época, durante um tempo ativista político notado (e desatrado), tornou-se um recluso nas montanhas? Heidegger atribui a sua virada a um chamamento contido na poesia de Hölderlin, um ditame também só audível para aqueles raros itinerantes que passaram pelo mesmo abalo e ficaram fora do alcance de toda antropologia, psicologia e metafísica.
Antes de continuar, preciso dizer que não me reconheço no perfil heideggeriano desses poucos e raros, e que apresentarei uma leitura decididamente mundana, não desterrada, da maneira como Heidegger formulou inicialmente o impulso fundamental do seu pensamento e o redirecionou em seguida.
Já na primeira fase, a de Ser e tempo, Heidegger deixou-se mover pela pergunta pelo ser. Essa pergunta era desdobrada como indagação pelo "sentido" do ser. A resposta era buscada na relação do homem ao ser, relação que consistiria na compreensão do sentido do ser, no envolvimento com o ser e no exercício de ser. Qual é o sentido do ser? O de presença manifesta no horizonte do tempo, mais precisamente, nos horizontes temporais nos quais o homem se encontra "lançado". Compreender o ser significa "relançar", "projetar", e assim explicitar, a temporalidade do ser. O tempo originário, do qual seriam deriváveis todos os outros, é o do existir humano; não, como em Kant, o tempo das coisas da experiência perceptiva. Este último, derivado, é composto de uma série infinita, linear, dos momentos de agora, nos quais as coisas se dão, ou não se dão, segundo a ordem causal; o primeiro, um horizonte finito, circular, das dimensões do passado, presente e futuro do aí, do tempo-espaço do existir humano.
O existir-aí no tempo-espaço é sempre o meu próprio, assunto que me envolve e me impõe o cuidado para com o sentido diferencial do meu existir e da sua continuidade no tempo originário. Essa continuidade é constantemente posta em questão pela minha possibilidade estrutural de não mais ser. O ser do homem e no homem é um ser-para-ofim, um ser-para-a-morte. Ele se põe em suspenso e se transcende a si mesmo. É finito, sendo a sua finitude desocultada na angústia.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Nous faisons nos chemins comme le feu ses étincelles

Com um som longínquo de edredons provisórios '' la bougie où sombrent les ténèbres '' (decauville) eu fazia o romance parecer rústico e apressado como um diário : ''Lequel est l ´homme du matin et lequel celui des ténèbres ?'' . Meu dever habitava-me o rosto durante toda a noite, assim como o corpo ; nas minhas costas , o horizonte giratório de um vidro açafroado reconciliava a pluma escura dos juncos com o plano ácido do mundo ; e aquilo retornava também no sonho seguinte: les bûches tombaient sur cet ordre fragile maintenu en suspens par l ´alliance de l ´absurde ----- durante semanas governando minha meditação com a mesma fria petulância com que administrava-me meu sono, meu café e minha obra. Não o céu, mas o lençol daminha obra, seu barulho de fósforos.   Havia nela agora um espaço hostil mas estranhamente pacificado, onde a luta fôra substituída pelo cálculo sagaz e as circunstâncias.  A prova era minha inexpressividade matemática , um resto de equação se demorando para sempre na cabeça. A visão e os ruídos não vinculados à realidade ordinária . O misterioso : tantôt m ´était soufflé au visage l ´embrasement , tantôt une âcre fumée . Chamava minha discrição social de então de '' a montagem habilidosa do silêncio interno em sociedade '' . À ne pas barrer la route a la chaleur grise ? INNUENDOS (!) ----- de tanto que estava em dia com a atualidade em tantas coisas , sobretudo as palavras-chave do mundo político. Tentador explicar isso mediante um desdobramento : o rastro de um escritor como eu era o desenvolvimento progressivo, harmonioso, das partes que um dia iriam frondosamente integrar a árvore dada ao vento ; as etapas , as fixações , a organização dos sistemas sensitivos, intelectuais e morais em torno de noções de vivências ''proved upon the pulses '' , como dizia Keats . Nesse diário, a leitora me vê muitas vezes suspeitando de que morrerei cedo ; desde o começo, porém , sua intuição sabe que não será assim . Então , não há pressa, não há improvisação , não há golpes de mão como aqueles que angustiaram o rastro de Byron ou Balzac.  Escrevo estilizadamente, e imprevisivelmente, pois acredito em fazer as coisas de modo imprevisto . E há uma segura cenestesia no meu estilo que me permite controlar e distribuir na vida , em distâncias harmoniosas , os produtos mais altos da cultura. O valor pascalino da leitura que já é em si um encontro, por partir para aquilo que intimamente já é  : um ''eu'' deambulatório (solvitur ambulando ) como foi estudado por Rivièri em Rimbaud ---- par le sens on va à la page . Não somente palavras, literalidades, mas valores, ângulos de ataque e defesa, posição. O que se diz no fim é sempre resíduo de uma operação maior, é a notação abstrata de uma totalidade em cujo centro está um calor sem nome, místico, um puro ser presente , um silêncio vivo que é um ''eu '' , a verdadeira escritura. Matéria tão polida ao ser desenhada por nossos olhos do lado de fora que a luz se alegra com o traço e penetra em cheio. Com humor (virtude que, no caso, ajuda a acabar com o pessimismo de qualquer epígrafe ) toco minha espada no ombro da página : '' I ´était de la race des diamants , qui coupe la race des vitries '' . sustentáculo e disponibilidade da inteligência, reconhecendo que a Beleza nos ultrapassa , um desejo sem forma a descobre para nós e nossa pele nos leva a crer nela, a aceitar sua contínua afirmação. Nous faisons nos chemins comme le feu ses étincelles. É o que dizem meus textos ---- e sua força inevitável vem de que não exatamente ''dizem'' , mas dão à leitora a coisa em si , que logo entra nessa ordem que é o ''eu ''.

KM

ENXERTOS ESPECTRAIS E PETRARCAMENTOS




O que se quer escrevível aqui
é o resultado final da OFICINA,
discreto e breve, retocando a
LOJA (rindo do sentido se fazendo 
inter-clics, naquele MAR ESCURO
da consciência apressada do iniciado,
que apressa o JOGO, apressando
todo eco incômodo, todo inferno
criativo irradiante num palhaço
leve e bem treinado (efeito do contraste
do peso-pesadelo calculado no olho
de quem VÊ do outro lado de quem
APENAS OLHA. Âncora de pedra
da ATENÇÃO, para manter a atenção 
de quem lê, iscada COMO risco de 
ponderação e censura, mas todos igualmente
ameaçados pelo que está no ar,
INORGÂNICO, instalado na linguagem, 
operante enquanto flutua sobre as águas
de corpo-a-corpo do RIO, limpo
de toda apalpação revista
nas visões diretas da ordem-implicada.
Os sintomas de cada CENA, auto-elaborando-se
na prática, dispensando anestesia
(qualquer anestesia destinada à
desacelerar auto-elaborações implícitas).
Por dentro das mãos há (recordemos)
a MÃO IRREMEDIÁVEL, ilhada
nos seus alongamentos de urgência,
estalando poderosamente sempre que
o plano se torna íngreme demais
DE REPENTE, restando-lhe apenas a
NADIFICAÇÃO COMPLETA ou um
frágil diagrama para o dia; enquanto
o DRAMA NATURAL se desenrola,
o pensamento se imiscui em movimentos
do mais internalizado dos silêncios,
preparando a CORRIDA NO ESCURO
(o escoamento: fluxos, massas e
OBJETOS COMERCIAIS A-PREÇADOS;
o agenciamento, a precipitação destes
fluxos na velocidade das paredes,
estratificando e confirmando
toda essa AGÊNCIA SEM SOM
até o TATO topar consigo mesmo
e ELA pesar ainda mais sua MÃO
com aquilo que ELA mesma 
o faz escrever, enquanto os olhos 
suam visões noturnas por igual
nos enxertos espectrais da carne.
PETRARCAMENTO IDILIOSO
(implicado no Númen auto-gerado
da Super-Consciência xamânica).
Che ´l verde move sue viste,
l ´anime da ´lor corpe pellegrine.
E ´l mondo remaner senza ´l sue sole
né l ´occhi miei, che luce né l ´alma
(non sanno, senza sue dolci parole).
PETRARCAMENTO PEDAGÓGICO
(autônomo, foto-voltaico).
Adoro in terra, errante sai ´l mio stile,
Faccendo lei sour ´ogn altra gentile,
Leggiadra, onesta e bela.



KM

COMÉDIA DA SEDE 2- O ESPÍRITO (tradução minha de trecho)

COMÉDIA DA SEDE

COMEDIE DE LA SOIF

2. L’esprit

Juifs errants de Norwège
Dites-moi la neige.
Anciens exilés chers
Dites-moi la mer.

MOI – Non, plus ces boissons pures,

Ces fleurs d’eau pour verres ;
Légendes ni figures
Ne me désaltèrent ;

Chansonnier, ta filleule
C’est ma soif si folle,
Hydre intime sans gueules
Qui mine et désole.


2- O ESPÍRITO
(tradução minha de trecho)

Judeu Errante na Noruega,
dita-me o cair da neve
nos nossos  velhos exilados ternos,
conta-me o oceano.

 EU ––. Non, plus ces boissons pures,
nem essas flores de floricultura
nem essas legendas e figuras, 
nada disso jamais me ''desalterou''. 

Chansonnier, tua afilhada
é minha Sed Non Satiata, 
 hidra íntima sem bocas  
que mina e desola.

*

Com uma  citação para terminar:

''Ó demônio sem dó! a tua chama acalma!''
(Charles Baudelaire)

*

BOM PENSAMENTO MATINAL, Rimbaud (tradução minha da terceira estrofe)


BOM PENSAMENTO MATINAL

Bonne pensée du matin
Arthur Rimbaud

(tradução minha da terceira estrofe)


Dans leur désert de mousse, tranquilles,
Ils préparent les lambris précieux
Où la richesse de la ville
Rira sous de faux cieux.

Em deserto de musgo postados,
tranquilos, preparam lambris preciosos
sob os quais a riqueza
rirá, como sob falsos céus.

Bannières de mai (Rimbaud, tradução minha de trecho)

Je sors. Si un rayon me blesse
Je succomberai sur la mousse.

Qu’on patiente et qu’on s’ennuie
C’est trop simple. Fi de mes peines.
je veux que l’été dramatique
Me lie à son char de fortunes
Que par toi beaucoup, ô Nature,
– Ah moins seul et moins nul ! – je meure.
Au lieu que les Bergers, c’est drôle,
Meurent à peu près par le monde.

Je veux bien que les saisons m’usent.
A toi, Nature, je me rends ;
Et ma faim et toute ma soif.
Et, s’il te plaît, nourris, abreuve.
Rien de rien ne m’illusionne ;
C’est rire aux parents, qu’au soleil,
Mais moi je ne veux rire à rien ;
Et libre soit cette infortune.

Arthur Rimbaud, Derniers vers

BANDEIRAS DE MAIO

(Rimbaud, tradução minha de trechos)

(...)

Marcho! Se me ferisse um relâmpago
sucumbiria no musgo do pântano.

Todo mundo se aborrece esperando,
é muito simples. Não vão me ver chorando.
Antes um dramático verão de bundas
arderá no carro improvisado (da Fortuna).
De todo em tuas mãos, Ó Natureza,
morto e nulo, mas não ''com certeza''.
Não como os Pastores ¡que cômico!
mas na contramão, no holocausto atômico.

Quero que as estações me usem,
e a ti entrego minha vida, Natureza,
com toda minha sede e minha fome:
faz delas sachês, usa-as como fones
pois já nada no mundo me ilude,
rir do Sol é como rir de um nude.
Et libre soit cette infortune.

Chanson de la plus haute tour (tradução minha)


Oisive jeunesse
À tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah! que le temps vienne
Où les cœurs s'éprennent.

Je me suis dit : laisse,
Et qu'on ne te voie :
Et sans la promesse
De plus hautes joies.
Que rien ne t'arrête
Auguste retraite.

J'ai tant fait patience
Qu'à jamais j'oublie;
Craintes et souffrances
Aux cieux sont parties.
Et la soif malsaine
Obscurcit mes veines.

Ainsi la Prairie
À l'oubli livrée,
Grandie, et fleurie
D'encens et d'ivraies,
Au bourdon farouche
De cent sales mouches.

Ah! Mille veuvages
De la si pauvre âme
Qui n'a que l'image
De la Notre-Dame!
Est-ce que l'on prie
La Vierge Marie ?

Oisive jeunesse
À tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah! que le temps vienne
Où les cœurs s'éprennent.




CANÇÃO DA MAIS ALTA TORRE
(Rimbaud, tradução minha)

Juventude ociosa,
Desserviço de tudo,
Uma delicadeza horrorosa
Fez de mim um absurdo.
Que venha, que venha
o amor que a alma desenha.

Diz-me: esquece tudo
e que ninguém te veja:
sem promessas no escuro
e salmos entre cervejas.
¡Que nada possa parar-te,
ou do refúgio apartar-te!

Tanto tenho esperado
que agora fiquei surdo;
temores acovardados
sumindo no céu curvo.
Enquanto a sede odeia
e obscurece minhas veias.

Assim a fértil pradaria
que o olvido engana
cresce com sua rosaria
de incensos e verbenas.
Sujo montão de moscas
zunindo -- é muita a bosta.

Ah! Viuzês danosa
de pobre alma danada
que busca, pegajosa,
enroscar-se em Nossa Senhora!
Quem reza em agonia
agora, para a Virgem Maria?!

Juventude ociosa,
Desserviço de tudo,
Uma delicadeza horrorosa
Fez de mim um absurdo.
Que venha, que venha

o amor que a alma desenha.




MAU-OLHADO PÚDICO

''Il s’agit de moi, 
Vertement s’explique''
(Rimbaud)

Sou eu, ¿lembra de mim? 
despacha-me então, alegre.
depois, na sala de espera
desconverso sobre jaulas com ela
e penso em venenos de boj
e baboseiras ao sol, em silêncio:
não posso com tanta coisa
sem comércio nem espaço:
mudas, plenas de drama e
comédias de ''te amo'', 
tudo num giro de cenas
de múltiplos nadas públicos,
apenas linfa e flora.
Si gai, si facile : 
Ce n’est qu’onde, flore, 
é apenas linfa e flora, 
et... Il s’agit de moi, 
vertement s’explique 
múltiplos nadas públicos!, 
Atacando minha voz
com uma mau-olhado púdico. 

KM

L'Éternité, de Rimbaud (uma tradução minha )

L'Éternité

Elle est retrouvée.
Quoi ? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

Ame sentinelle,
Murmurons l'aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.

Des humains suffrages,
Des communs élans
Là tu te dégages
Et voles selon.

Puisque de vous seules,
Braises de satin,
Le Devoir s'exhale
Sans qu'on dise : enfin.

Là pas d'espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.

Elle est retrouvée.
Quoi ? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.



RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Edição bilingue. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. 


Eternidade 
(Rimbaud)

Ela foi reencontrada!
--- Quem? --- A Eternidade.
É a maré atropelada
Que o pôr do sol invade.

Alma sentinela,
Desvela o segredo
Da nula noite dela
e seu dia de incêndio.

Sufrágios universais,
Ímpeto comum,
Ali te liberas
E voa segundo um...

Já que dos outros,
Brasas de cetim,
Só o Dever volta
Sem dizer: Enfim.

Perde-se a esperança
Sem nenhum oriétur,
Ciência e paciência,
cem por cento mártir.

Ela foi reencontrada!
Quem? --- A Eternidade.
É a maré atropelada
que o pôr do sol invade.

Arthur Rimbaud
Tradução: Matheus Dulci

segunda-feira, 29 de julho de 2019

O BARDO DO NAGUAL BON


Não sou mais escritor, estou apenas falando por escrito, como falaria num bar entre jornalistas, críticos de arte e personagens imaginárias de contos meus, com aquela mesma fluidez acanhada por circuitos de disputas e resenhas opacas. Alguns livros inócuos, de fato, acabaram de ser lidos nos últimos meses, mas com um enorme aproveitamento sub-liminar --- com paralelos não-codificáveis em profusão, enquanto desterritorializações poéticas bem sucedidas tornavam o panorama das nuvens de influência global bastante complexas. Com Maquiavel encolhido no oco de minha palestra, eu proferia ali a ''Aliança de Todos os Temas'' e citava as ''Correspondências com o Pequeno Demônio''. Nível imediato da mascarada: o nível de tantos projetos abortados, substituídos às pressas, arranjados de novo dentro de algo mais funcional, sem ofensas bloqueadas por telepatia, ali onde todo avanço republicano parece impossível, e frequentemente é suplantado por formas mais brandas de comunicação. Uma mentalidade truncada, derivada disto, precipitava o poeta, seus personagens e seu público entre manchetes e corredores de imagens foto-montadas, em busca da ''certeza negativa'' do Novo Saber. Num súbito ''surpreender flagrante'' do Thaumázein, turbulento e conflitivo, vozes de contribuições díspares apareciam armadas até os dentes no início de cada pensamento.

Uma espécie de tato com muitas ramificações no desejo de Carmen e Beatriz, mais uma trama de preocupações momentâneas, estava dando àquela sala parcamente iluminada um ar insalubre de conspiração amorosa proibida. O hábito da lascívia é muitas vezes paralisante, torna-nos reservados e alerta aos minimos detalhes, e a intimidade verbal nascente entre eu e elas não satisfazia de jeito nenhum.  Os móveis eram belamente harmonizados naquela sala onde o vime e o veludo alaranjado predominavam, uma sala impossível de se escandalizar com um golpe de dois, no sofá sexual e furtivo a um só tempo, e ainda por cima reminescente, ou comovente o bastante para convencer-nos a baixar a guarda. Carmen deixou suas roupas e juntou-as no tapete, como previ. O inverno, agora, se encarregaria de esmagar todas aquelas conjecturas sobre o futuro, e nos arrastaria para um mar onde haveria uma série de humanos iguais a nós, seja na praia ou no home-office, teclando do helicóptero ou saindo pela porta de uma boate, de madrugada. Pela janela do apartamento, todas essas possibilidades incluiam-nos como um fio de contas coloridas --- espelhados na parede do corredor, nos compactos cones das plantas ornamentais do edifício. Carmen estava com uma leve queimadura de sol do lado direito da testa e se aventurou a sair às três da tarde com um chapéu de abas enormes. Comprou cigarros e cerveja gelada, ''companheiríssima" ! Entrou no chuveiro assim que voltou, encharcada e ofegante.

---- Beatriz telefonou e disse que só chegará mais tarde, eu disse.

Às onze da noite, a Flecha, a mais elegante das constelações, voava no céu sem se mover entre o Cisne e a Águia, gigantescos aviões de pedras preciosas cujos pilotos eram Deneb e Altair. A Via-Láctea vagueava como uma corda de roupas no céu esbranquiçado pelo calor. ''O dinheiro do jogo ''queima as mãos'' e bebe a sombra da alma perdulária, o calor do jogo a consagra ao jogo, e uma constelação pousa na página da Via-Láctea prometida á cópula'' (Drag-Drukpa). Mihares de festas esparsas brotavam simultaneamente na noite escaldante de Salvador, organizadas com dificuldade, tumulto e usuras top, o horário dos movimentos esbranquiçando os rostos no Rio Vermelho, com todos aqueles casais em curto-circuitos meio queimados de sol revirando molhos fumegantes em seus pratos italianos nas mesas do passeio, entre cheiros de mariscos marinados e batoms, entre velocímetros de pizzas a domicílio e xingamentos, na rua de elétricos esquecimentos e flertes, dos fones de ouvido e celulares com psicologia e sociologia de jogos de caixa de papelão de trinta reais. Tudo reduzido à uma molécula cujas derivações menores da forma cla´ssica da cadeia gigante de protéina recaptura (com todos os desvios de forma clássica) alguma CABEÇA ENCOLHIDA , retorcida, de um íon das contradições e possibilidades que foram outrora um ser humano, um general dos exércitos de suas células, Deus de seu corpo-universo. O Vórtice não parava por ali. Os ventos do turbilhão -- -a rotação de Deus, novamente? ---estavam carregando-se de consequências abruptas --- afundava-se no diálogo ou intentava-se vetores e auto- desaparecimentos auto-explicativos, enquanto no centro de mim, claro como o Olho gelado de Hórus, encontrava-se um ponto de não-julgamento contra o caos cheio de objetos dos egos alheios.

Naquela sala apertada a espionagem reptiliana tinha trinta metros de profundidade, e bastava ao olhar a vigilância dos objetos de arte, da ausência de gestos, para a curiosidade extra-sensorial tornar-se múltipla e ao mesmo tempo única; e sobretudo entre o ''trovaille'' curioso da conversa e o intento das artes do olho, da câmera apontada, seu senso depurado de luz e cor, como elemento intelectual do prazer apocalíptico-informativo ---- suas projeções cambeantes na Balança. Na Poesia, por exemplo, são os Drukpas-Advinhos, os Kennings irlandeses, os acrósticos, as tramas verbais de citações múltiplas, seu poder retórico traumatógeno; assim também os jogos desvairados de Virgílio de Bigorre e Isidoro de Sevilha, que lembram tanto Joyce (que sabia disso em sua epifania), e os exercícios de composições temporais dos tratados de poética, como o de Heidegger, que parecem um programa para Goddard, mas sobretudo o gosto benjaminiamno pelas ''coleções'' e ''inventários''. Ó místico almanaque vivo ''de metamorfosis, de mutación y de cambio que se vincula con toda la existencia humana y con la creación poética del autor. La posibilidad de ser otro, de enajenarse, de extrañarse puesto que escribe desde la descolocación como lo señala el autor en el ensayo "Del sentimiento de no estar del todo" (Júlio Cortázr)
...
rechazar el fetichismo del libro, como producto de una actividad que escapa a la vez a todo lujo estético y a toda docencia deliberada, instrumento de automanifestación integral del hombre, de autoconstrucción, vehículo y sede de valores que, en última instancia, no son ya literarios. El libro es producto de una práctica nunca disociada del hombre-autor-lector ...

(...)la trama cada vez más compleja de tales construcciones posibilita el desarrollo de una combinatoria progresivamente totalizadora que imbrica la mera literatura con la antropología, la historia, la semiología y a través de éstas y otras mediaciones, con la realidad misma, especialmente latinoamericana(...)

(...) la disposición del libro, "las alianzas fulminantes", violan el orden establecido, convencional de las cosas, de ahí su carácter miscelánico y heterogéneo. En su lugar aparece un orden poético que a su vez crea otros puntos de referencia que se orientan al lector o a mundos alternos que los lectores pueden compartir, rechazar, romper o construir con el autor''

Júlio Cortázar


Enfim, eu tinha agora um Verbo que era algo absolutmente novo no Universo, por todo meu corpo, meu inconsciente RIMBAUDTIZAVA passagens de vibração celular acelerada, livre das mazelas da experiência artística malograda. Um pouco de rumor e claridade bastava, e o além já começava com a sensação de nudez do pensamento Meus pensamentos não só se repetiam sistematicamente, como uma mandala sob um holofote, como tomavam uma forma intensa e decidida. Surfava entre camadas superpostas de ruas e prédios numa acrobática miragem, quando comecei a subir a ladeira do meu edifício, no Rio Vermelho. Um lado dela estava maior que o outro, de modo que tive que andar inclinado durante alguns metros, para não tropeçar e cair. Caminhava como se acompanhasse uma procissão , entre estranhos com mochilas nas costas e fones no ouvido, e as pessoas olhavam para mim como se pudessem escutar minha conversa interior. Olhavam para mim como se eu estivesse fumado. Mas eu respirava fundo e voltava a me sentir completamente a salvo por trás do meu rosto. Alguma coisa queimava minha garganta seca, então, acendi um cigarro e milagrosamente um fio de saliva brotou debaixo da minha língua seca, como um jato de leite fresco espirrado de uma rocha calcárea, e assim pude engolir um pouco e chegar até o apartamento com serenidade. O fato de a chave entrar na fechadura e, depois da porta, eu encontrar uma sala cheia com uma mobília perfeitamente familiar e os quadros de Carmen exatamente na mesma posição, me pareceu naquele instante a resolução de um gigantesco e complicado teorema. Ela estava sentada na poltrona da sala, com seu livro aberto diante dos olhos.

---Oi , ela disse. Você fumou maconha ?

--- Não exatamente, respondi. Estive andando alto através do Tempo. E esse --- apontei para seu colo --- É seu novo livro? Posso ler? --- pedi a ela, transmitindo a confusão momentânea da minha mente seccionada para a dela, inteira na leitura do livro. Num transporte mudo e inopinado, fiz arder o livro em sua mão. NUDEZ! ---- NÃO É ALGO SÉRIO ?, perguntei. ''A verdadeira aspiração acentua-se ao ponto de alarmar ----- esse prurido de prazer, de santidade , de morte... a cidade se confunde com os deuses e tarefas extenuantes aparecem em seus exatos limites: a pior simplicidade, a NUDEZ,  é obitda para elas'' (do meu próprio livro de poemas, Drag-Drukpa). Garanto-lhe que custou-me um ''bom preço'' escreve-lo, mas estou maravilhado.

Ela se enfureceu, irrespondendo ao meu apelo. Minha pretensão inicial era apenas inspira-la, demonstrando interesse pela conclusão de sua obra, mas decidi toureá-la com meu martelo à guisa de ''Olés'', triplicados na conversa por muitos golpes da memória. E citações...

---- Só por causa de uma conversa? (argumentei) Todos nós, personagens, escrevemos nesta altura do livro. Beatriz e Sabrina devem ter lhe falado sobre essa ''Máquina de Fatalidades'', e dos baralhos que nascem em nossas mãos, do dia para a noite, perguntando a cada personagem nosso COMO VOCÊ SE CHAMA? QUAL HISTÓRIA LHE OCORRE?. Nossos olhos o tempo todo ali, suportando o impulso do rascunho diário, alterando-lhe as linhas dos sentidos, forçando os meandros das linhas fracas do esgotamento, dos esforços da vaidade para obter o máximo resultado de cada plus da consciência extática, que apesar disso sempre acaba em pré-dizeres vagos, esfumando-se no limite fronteiriço entre a Linguagem e a Língua do Rastreador.

''A arte consiste então em encolher o Tonal até o ponto em que o Nagual tome as rédeas, e então parar por aí e impedir que o Tonal encolha demais. Acá la corona del esfuerzo de los brujos, el uso máximo del nagual. La meta de la preparación no es entonces enseñarle conjuros ni embrujos, sino preparar a su tonal para que no se caiga de narices''.

Carlos Castaneda

Algo fértil que
reverbera novos ângulos,
MIMETIZANDO-SE.
A oposição, o impossível, o
sobre-humano, se deparam
com o que desejam impor.
Então ENCOLHE-SE
enquanto se ampliam as ''lembranças''
e dilata-se a biografia

em que instalamos nosso espanto.

Também do meu liveo Drag-Drukpa

Naturalmente, nos recessos longínquos da consciência, o Logos se abria à tratativas mais diretas com a mente criativa do Nagual Bon, e uma super-abundância energética desconhecida dava à cada ato ou gesto seu uma aparência de ''coisa escrita'', como um Poeta no qual a imagem do mundo se compraz, sem comedimento. 

Carmen se afundou no sofá e fez um sinal de positivo do tipo NEM AÍ, balançando a cabeça quase imperceptivelmente e fazendo pose de famosa fotografada, enquanto fumava um resto de haxixe. O cheiro da queima me deixou quase tão alto quanto ela, então perguntei:

---- Carmen, porque você não gosta do Diário? ---- mas, com isso, via que eu apenas ia e vinha, falando RIMBAUDTIZADAMENTE das páginas que se seguiriam e, não obstante, eu ATUAVA DE VERDADE NELA.

---- O Diário me esteriliza, mas nada me é mais alheio. Não é o reflexo do meu dia-a-dia, está voltado para algo diverso, que no entanto emana dos movimentos e sons do meu corpo, dia após dia. Muitas vezes, me parece um desperdício, um esbanjamento de mim mesma escrevê-lo. Gosto dele apenas pela metade, pela importância e direção que, através de certas vicissitudes de reflexão muito variadas, afirma a constância de certas preocupações minhas. Ou como diria Cortázar:

''Las mangostas son reducidas a recoger hojas secas bajo la atracción engañosa de la esencia que viene de la selva del norte, mientras una sociedad fantasmal se emplea en trabajos codificados... Las mangostas jamás aparecen descritas, pero reaccionan a la esencia de la serpiente (pulverización) educadas y entrenadas por personal técnico''

Os seis bardos


O Bardo Thodöl distingue seis bardos (estados de consciência). Em cada um dos bardos, a experiência do ser senciente tem qualidades distintas. Todos esses estados são intermediários, é possível à consciência distingui-los. A percepção do contraste entre um bardo e outro é torna-se possível através do desenvolvimento da lucidez.

Segundo a tradição tântrica, existem técnicas de meditações específicas que correspondem a cada uma dessas qualidades, para conduzir a consciência à percepção das qualidades fundamentais da mente e seus fenômenos.[4] Os três bardos do estados intermediários de consciência no plano pós-morte sãoː
  1. Chikhai Bardo ou "bardo do momento da morte"ː é o bardo dos acontecimentos psíquicos no momento da morte, onde surge a experiência com a "Clara Luz Primordial", uma espécie de vislumbre efusivo da essencialidade da consciência.
  2. Chönyid Bardo ou "bardo da experimentação da realidade"ː trata do estado de sonho que começa logo após a morte, ao qual pode ser compreendido como a fase do surgimento das “ilusões kármicas” decorrentes das ações, pensamentos e experiências em vida.
  3. Sidpa Bardo ou "bardo do renascimento"ː se refere aos impulsos e desejos de renascimento e aos estados psicológicos pré-natais.
O livro também menciona três outros bardos, ou estados intermediários de consciência no plano da vidaː
  1. Rang bzhin Bardo  bardo da "vida", ou o estado de consciência desperta comum;
  2. Bsam gtan Bardo – bardo do "dhyana", ou estado de profunda meditação (ao atingir o êxtase meditativo);
  3. Rmi-lam Bardo – bardo do "sonho", o estado de sonho durante o sono normal.
A identificação da consciência com a Clara Luz também pode ser entendida como o sétimo estado ou supra estado de consciência, o estado de pura quiescência.

"Ó nobre filho, ouça atentamente sem distrair-te. Existem seis estados de Bardo, que são: o estado natural do Bardo durante a vida; o Bardo do estado onírico (durante o sono); o Bardo do equilíbrio extático (da profunda meditação); o Bardo do momento da morte (Chikhai Bardo); o Bardo da experiência da Realidade (Chönyid Bardo); o Bardo do processo inverso da existência sangsárica (ou o bardo do renascimento, Sidpa Bardo)... Ó nobre filho, é chegado o momento daquilo que denominam "morte"... Não te apegues mais a esta vida por fraqueza ou covardia... Não sejas fraco, não te apegues... Lembra-te que a preciosa verdade, agora, a ti se revelará..."[3] [p 71/72]