segunda-feira, 29 de julho de 2019

O BARDO DO NAGUAL BON


Não sou mais escritor, estou apenas falando por escrito, como falaria num bar entre jornalistas, críticos de arte e personagens imaginárias de contos meus, com aquela mesma fluidez acanhada por circuitos de disputas e resenhas opacas. Alguns livros inócuos, de fato, acabaram de ser lidos nos últimos meses, mas com um enorme aproveitamento sub-liminar --- com paralelos não-codificáveis em profusão, enquanto desterritorializações poéticas bem sucedidas tornavam o panorama das nuvens de influência global bastante complexas. Com Maquiavel encolhido no oco de minha palestra, eu proferia ali a ''Aliança de Todos os Temas'' e citava as ''Correspondências com o Pequeno Demônio''. Nível imediato da mascarada: o nível de tantos projetos abortados, substituídos às pressas, arranjados de novo dentro de algo mais funcional, sem ofensas bloqueadas por telepatia, ali onde todo avanço republicano parece impossível, e frequentemente é suplantado por formas mais brandas de comunicação. Uma mentalidade truncada, derivada disto, precipitava o poeta, seus personagens e seu público entre manchetes e corredores de imagens foto-montadas, em busca da ''certeza negativa'' do Novo Saber. Num súbito ''surpreender flagrante'' do Thaumázein, turbulento e conflitivo, vozes de contribuições díspares apareciam armadas até os dentes no início de cada pensamento.

Uma espécie de tato com muitas ramificações no desejo de Carmen e Beatriz, mais uma trama de preocupações momentâneas, estava dando àquela sala parcamente iluminada um ar insalubre de conspiração amorosa proibida. O hábito da lascívia é muitas vezes paralisante, torna-nos reservados e alerta aos minimos detalhes, e a intimidade verbal nascente entre eu e elas não satisfazia de jeito nenhum.  Os móveis eram belamente harmonizados naquela sala onde o vime e o veludo alaranjado predominavam, uma sala impossível de se escandalizar com um golpe de dois, no sofá sexual e furtivo a um só tempo, e ainda por cima reminescente, ou comovente o bastante para convencer-nos a baixar a guarda. Carmen deixou suas roupas e juntou-as no tapete, como previ. O inverno, agora, se encarregaria de esmagar todas aquelas conjecturas sobre o futuro, e nos arrastaria para um mar onde haveria uma série de humanos iguais a nós, seja na praia ou no home-office, teclando do helicóptero ou saindo pela porta de uma boate, de madrugada. Pela janela do apartamento, todas essas possibilidades incluiam-nos como um fio de contas coloridas --- espelhados na parede do corredor, nos compactos cones das plantas ornamentais do edifício. Carmen estava com uma leve queimadura de sol do lado direito da testa e se aventurou a sair às três da tarde com um chapéu de abas enormes. Comprou cigarros e cerveja gelada, ''companheiríssima" ! Entrou no chuveiro assim que voltou, encharcada e ofegante.

---- Beatriz telefonou e disse que só chegará mais tarde, eu disse.

Às onze da noite, a Flecha, a mais elegante das constelações, voava no céu sem se mover entre o Cisne e a Águia, gigantescos aviões de pedras preciosas cujos pilotos eram Deneb e Altair. A Via-Láctea vagueava como uma corda de roupas no céu esbranquiçado pelo calor. ''O dinheiro do jogo ''queima as mãos'' e bebe a sombra da alma perdulária, o calor do jogo a consagra ao jogo, e uma constelação pousa na página da Via-Láctea prometida á cópula'' (Drag-Drukpa). Mihares de festas esparsas brotavam simultaneamente na noite escaldante de Salvador, organizadas com dificuldade, tumulto e usuras top, o horário dos movimentos esbranquiçando os rostos no Rio Vermelho, com todos aqueles casais em curto-circuitos meio queimados de sol revirando molhos fumegantes em seus pratos italianos nas mesas do passeio, entre cheiros de mariscos marinados e batoms, entre velocímetros de pizzas a domicílio e xingamentos, na rua de elétricos esquecimentos e flertes, dos fones de ouvido e celulares com psicologia e sociologia de jogos de caixa de papelão de trinta reais. Tudo reduzido à uma molécula cujas derivações menores da forma cla´ssica da cadeia gigante de protéina recaptura (com todos os desvios de forma clássica) alguma CABEÇA ENCOLHIDA , retorcida, de um íon das contradições e possibilidades que foram outrora um ser humano, um general dos exércitos de suas células, Deus de seu corpo-universo. O Vórtice não parava por ali. Os ventos do turbilhão -- -a rotação de Deus, novamente? ---estavam carregando-se de consequências abruptas --- afundava-se no diálogo ou intentava-se vetores e auto- desaparecimentos auto-explicativos, enquanto no centro de mim, claro como o Olho gelado de Hórus, encontrava-se um ponto de não-julgamento contra o caos cheio de objetos dos egos alheios.

Naquela sala apertada a espionagem reptiliana tinha trinta metros de profundidade, e bastava ao olhar a vigilância dos objetos de arte, da ausência de gestos, para a curiosidade extra-sensorial tornar-se múltipla e ao mesmo tempo única; e sobretudo entre o ''trovaille'' curioso da conversa e o intento das artes do olho, da câmera apontada, seu senso depurado de luz e cor, como elemento intelectual do prazer apocalíptico-informativo ---- suas projeções cambeantes na Balança. Na Poesia, por exemplo, são os Drukpas-Advinhos, os Kennings irlandeses, os acrósticos, as tramas verbais de citações múltiplas, seu poder retórico traumatógeno; assim também os jogos desvairados de Virgílio de Bigorre e Isidoro de Sevilha, que lembram tanto Joyce (que sabia disso em sua epifania), e os exercícios de composições temporais dos tratados de poética, como o de Heidegger, que parecem um programa para Goddard, mas sobretudo o gosto benjaminiamno pelas ''coleções'' e ''inventários''. Ó místico almanaque vivo ''de metamorfosis, de mutación y de cambio que se vincula con toda la existencia humana y con la creación poética del autor. La posibilidad de ser otro, de enajenarse, de extrañarse puesto que escribe desde la descolocación como lo señala el autor en el ensayo "Del sentimiento de no estar del todo" (Júlio Cortázr)
...
rechazar el fetichismo del libro, como producto de una actividad que escapa a la vez a todo lujo estético y a toda docencia deliberada, instrumento de automanifestación integral del hombre, de autoconstrucción, vehículo y sede de valores que, en última instancia, no son ya literarios. El libro es producto de una práctica nunca disociada del hombre-autor-lector ...

(...)la trama cada vez más compleja de tales construcciones posibilita el desarrollo de una combinatoria progresivamente totalizadora que imbrica la mera literatura con la antropología, la historia, la semiología y a través de éstas y otras mediaciones, con la realidad misma, especialmente latinoamericana(...)

(...) la disposición del libro, "las alianzas fulminantes", violan el orden establecido, convencional de las cosas, de ahí su carácter miscelánico y heterogéneo. En su lugar aparece un orden poético que a su vez crea otros puntos de referencia que se orientan al lector o a mundos alternos que los lectores pueden compartir, rechazar, romper o construir con el autor''

Júlio Cortázar


Enfim, eu tinha agora um Verbo que era algo absolutmente novo no Universo, por todo meu corpo, meu inconsciente RIMBAUDTIZAVA passagens de vibração celular acelerada, livre das mazelas da experiência artística malograda. Um pouco de rumor e claridade bastava, e o além já começava com a sensação de nudez do pensamento Meus pensamentos não só se repetiam sistematicamente, como uma mandala sob um holofote, como tomavam uma forma intensa e decidida. Surfava entre camadas superpostas de ruas e prédios numa acrobática miragem, quando comecei a subir a ladeira do meu edifício, no Rio Vermelho. Um lado dela estava maior que o outro, de modo que tive que andar inclinado durante alguns metros, para não tropeçar e cair. Caminhava como se acompanhasse uma procissão , entre estranhos com mochilas nas costas e fones no ouvido, e as pessoas olhavam para mim como se pudessem escutar minha conversa interior. Olhavam para mim como se eu estivesse fumado. Mas eu respirava fundo e voltava a me sentir completamente a salvo por trás do meu rosto. Alguma coisa queimava minha garganta seca, então, acendi um cigarro e milagrosamente um fio de saliva brotou debaixo da minha língua seca, como um jato de leite fresco espirrado de uma rocha calcárea, e assim pude engolir um pouco e chegar até o apartamento com serenidade. O fato de a chave entrar na fechadura e, depois da porta, eu encontrar uma sala cheia com uma mobília perfeitamente familiar e os quadros de Carmen exatamente na mesma posição, me pareceu naquele instante a resolução de um gigantesco e complicado teorema. Ela estava sentada na poltrona da sala, com seu livro aberto diante dos olhos.

---Oi , ela disse. Você fumou maconha ?

--- Não exatamente, respondi. Estive andando alto através do Tempo. E esse --- apontei para seu colo --- É seu novo livro? Posso ler? --- pedi a ela, transmitindo a confusão momentânea da minha mente seccionada para a dela, inteira na leitura do livro. Num transporte mudo e inopinado, fiz arder o livro em sua mão. NUDEZ! ---- NÃO É ALGO SÉRIO ?, perguntei. ''A verdadeira aspiração acentua-se ao ponto de alarmar ----- esse prurido de prazer, de santidade , de morte... a cidade se confunde com os deuses e tarefas extenuantes aparecem em seus exatos limites: a pior simplicidade, a NUDEZ,  é obitda para elas'' (do meu próprio livro de poemas, Drag-Drukpa). Garanto-lhe que custou-me um ''bom preço'' escreve-lo, mas estou maravilhado.

Ela se enfureceu, irrespondendo ao meu apelo. Minha pretensão inicial era apenas inspira-la, demonstrando interesse pela conclusão de sua obra, mas decidi toureá-la com meu martelo à guisa de ''Olés'', triplicados na conversa por muitos golpes da memória. E citações...

---- Só por causa de uma conversa? (argumentei) Todos nós, personagens, escrevemos nesta altura do livro. Beatriz e Sabrina devem ter lhe falado sobre essa ''Máquina de Fatalidades'', e dos baralhos que nascem em nossas mãos, do dia para a noite, perguntando a cada personagem nosso COMO VOCÊ SE CHAMA? QUAL HISTÓRIA LHE OCORRE?. Nossos olhos o tempo todo ali, suportando o impulso do rascunho diário, alterando-lhe as linhas dos sentidos, forçando os meandros das linhas fracas do esgotamento, dos esforços da vaidade para obter o máximo resultado de cada plus da consciência extática, que apesar disso sempre acaba em pré-dizeres vagos, esfumando-se no limite fronteiriço entre a Linguagem e a Língua do Rastreador.

''A arte consiste então em encolher o Tonal até o ponto em que o Nagual tome as rédeas, e então parar por aí e impedir que o Tonal encolha demais. Acá la corona del esfuerzo de los brujos, el uso máximo del nagual. La meta de la preparación no es entonces enseñarle conjuros ni embrujos, sino preparar a su tonal para que no se caiga de narices''.

Carlos Castaneda

Algo fértil que
reverbera novos ângulos,
MIMETIZANDO-SE.
A oposição, o impossível, o
sobre-humano, se deparam
com o que desejam impor.
Então ENCOLHE-SE
enquanto se ampliam as ''lembranças''
e dilata-se a biografia

em que instalamos nosso espanto.

Também do meu liveo Drag-Drukpa

Naturalmente, nos recessos longínquos da consciência, o Logos se abria à tratativas mais diretas com a mente criativa do Nagual Bon, e uma super-abundância energética desconhecida dava à cada ato ou gesto seu uma aparência de ''coisa escrita'', como um Poeta no qual a imagem do mundo se compraz, sem comedimento. 

Carmen se afundou no sofá e fez um sinal de positivo do tipo NEM AÍ, balançando a cabeça quase imperceptivelmente e fazendo pose de famosa fotografada, enquanto fumava um resto de haxixe. O cheiro da queima me deixou quase tão alto quanto ela, então perguntei:

---- Carmen, porque você não gosta do Diário? ---- mas, com isso, via que eu apenas ia e vinha, falando RIMBAUDTIZADAMENTE das páginas que se seguiriam e, não obstante, eu ATUAVA DE VERDADE NELA.

---- O Diário me esteriliza, mas nada me é mais alheio. Não é o reflexo do meu dia-a-dia, está voltado para algo diverso, que no entanto emana dos movimentos e sons do meu corpo, dia após dia. Muitas vezes, me parece um desperdício, um esbanjamento de mim mesma escrevê-lo. Gosto dele apenas pela metade, pela importância e direção que, através de certas vicissitudes de reflexão muito variadas, afirma a constância de certas preocupações minhas. Ou como diria Cortázar:

''Las mangostas son reducidas a recoger hojas secas bajo la atracción engañosa de la esencia que viene de la selva del norte, mientras una sociedad fantasmal se emplea en trabajos codificados... Las mangostas jamás aparecen descritas, pero reaccionan a la esencia de la serpiente (pulverización) educadas y entrenadas por personal técnico''

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