quarta-feira, 31 de julho de 2019

por que um arauto consagrado da fenomenologia – ciência da essência das coisas manifestas por si mesmas e em si mesmas – tornou-se pensador do oculto, do não objetificável, mesmo do não dizível, e que, paradoxalmente, erige obras ao oculto, desocultando-o dessa maneira?



os 34 "Cadernos pretos" – redigidos entre 1931 e 1948, e posteriormente revistos –, assim denominados pelo próprio Heidegger, que os envolvia em capas pretas, talvez para indicar a si mesmo, e posteriormente aos outros, que se tratava de pensamentos obscuros de um Heidegger obscuro, tal como Heráclito, o Obscuro – alguém que busca luz na escuridão.
Esses pensamentos foram zelosamente resguardados do público durante a sua vida, precisamente por só serem compreensíveis por aqueles poucos convocados a guardar a "verdade do ser" na palavra poética e em obras de arte. As reflexões constantes desses Cadernos, que suscitaram grande atenção recentemente no Brasil e no exterior, trazem, de fato, avisos preciosos para quem aceitar o convite de Heidegger de segui-lo no seu caminho percorrido nos trabalhos da seção III, desde Contribuições.
Como caracterizar melhor essa virada no pensamento de Heidegger? E por que um arauto consagrado da fenomenologia – ciência da essência das coisas manifestas por si mesmas e em si mesmas – tornou-se pensador do oculto, do não objetificável, mesmo do não dizível, e que, paradoxalmente, erige obras ao oculto, desocultando-o dessa maneira? Como é que um professor de filosofia aclamado e disputado pelas melhores universidades alemãs da época, durante um tempo ativista político notado (e desatrado), tornou-se um recluso nas montanhas? Heidegger atribui a sua virada a um chamamento contido na poesia de Hölderlin, um ditame também só audível para aqueles raros itinerantes que passaram pelo mesmo abalo e ficaram fora do alcance de toda antropologia, psicologia e metafísica.
Antes de continuar, preciso dizer que não me reconheço no perfil heideggeriano desses poucos e raros, e que apresentarei uma leitura decididamente mundana, não desterrada, da maneira como Heidegger formulou inicialmente o impulso fundamental do seu pensamento e o redirecionou em seguida.
Já na primeira fase, a de Ser e tempo, Heidegger deixou-se mover pela pergunta pelo ser. Essa pergunta era desdobrada como indagação pelo "sentido" do ser. A resposta era buscada na relação do homem ao ser, relação que consistiria na compreensão do sentido do ser, no envolvimento com o ser e no exercício de ser. Qual é o sentido do ser? O de presença manifesta no horizonte do tempo, mais precisamente, nos horizontes temporais nos quais o homem se encontra "lançado". Compreender o ser significa "relançar", "projetar", e assim explicitar, a temporalidade do ser. O tempo originário, do qual seriam deriváveis todos os outros, é o do existir humano; não, como em Kant, o tempo das coisas da experiência perceptiva. Este último, derivado, é composto de uma série infinita, linear, dos momentos de agora, nos quais as coisas se dão, ou não se dão, segundo a ordem causal; o primeiro, um horizonte finito, circular, das dimensões do passado, presente e futuro do aí, do tempo-espaço do existir humano.
O existir-aí no tempo-espaço é sempre o meu próprio, assunto que me envolve e me impõe o cuidado para com o sentido diferencial do meu existir e da sua continuidade no tempo originário. Essa continuidade é constantemente posta em questão pela minha possibilidade estrutural de não mais ser. O ser do homem e no homem é um ser-para-ofim, um ser-para-a-morte. Ele se põe em suspenso e se transcende a si mesmo. É finito, sendo a sua finitude desocultada na angústia.

3 comentários:


  1. Esses textos de caráter, portanto, claramente hermético, esotérico, com fortes ressonâncias gnósticas, só deveriam ser trazidos a público (de acordo com o plano de Heidegger) depois da edição completa do material das duas primeiras seções de Obras completas, que contêm escritos destinados ao público em geral, aos "muitos". A seção I desses escritos exotéricos, a primeira editada, consiste de obras já impressas durante a vida do filósofo. A seção II é dedicada às preleções de vários períodos do seu magistério sobre a história da metafísica, que estuda e diz o que são os entes, além de algumas sobre a poesia de Hölderlin. A quarta e derradeira seção das Obras, cuja publicação foi iniciada, também por determinação de Heidegger, por último (e ainda está em curso), é composta de volumes que trazem "Indicações e apontamentos" inéditos, de diferentes épocas. A partir de 2014, começaram a ser disponibilizados, como parte final dessa seção IV e de Obras completas, os 34 "Cadernos pretos" – redigidos entre 1931 e 1948, e posteriormente revistos –, assim denominados pelo próprio Heidegger, que os envolvia em capas pretas, talvez para indicar a si mesmo, e posteriormente aos outros, que se tratava de pensamentos obscuros de um Heidegger obscuro, tal como Heráclito, o Obscuro – alguém que busca luz na escuridão.
    Esses pensamentos foram zelosamente resguardados do público durante a sua vida, precisamente por só serem compreensíveis por aqueles poucos convocados a guardar a "verdade do ser" na palavra poética e em obras de arte

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  2. A partir dos anos 1930, Heidegger começa a ter sérias dúvidas sobre o poder do ser, no homem e do homem, de servir de abertura para a manifestação de tudo o que há, e acaba abandonando essa abordagem, ao mesmo tempo fenomenológica e antropológica (centrada no estudo do existir humano) da pergunta pelo ser. Suas dúvidas foram despertadas por várias considerações, em particular pela leitura, em 1930, do artigo "Mobilização total" e, em 1932, do livro O trabalhador, ambos de Ernst Jünger. Este autor sustenta que o mundo de hoje é tomado por um processo "vulcânico" de objetificação tecnológica dos entes no seu todo, que devasta todas as essências; destino metafísico que cai sobre o homem ocidental não sendo redutível a um modo de ser dos entes intramundanos, que fosse projetado, relançado, "deixado ser" no ser-o-aí humano individual. Sendo assim, o ponto de partida antropológico do Heidegger de Ser e tempo ficou abalado.
    Ao invés de aprofundar a sua antropologia, refazer a sua teoria da objetificação, incluindo considerações sobre a radicalização tecnológica da objetificação, e, nessa base, repensar os perigos da técnica, Heidegger deu uma viravolta radical: parou de olhar para o ser em termos da compreensão do homem do sentido do ser e entregou-se às tentativas de pensar o homem a partir da relação do ser ao homem, mais precisamente, da possível interpelação do homem pela "verdade do ser", sendo a verdade concebida a partir de palavra grega "a-letheia", des-ocultamento. O objetivo da sua "aletologia" era, como vimos, achar palavras para dizer a verdade do ser como um acontecer autônomo, independente do homem, mas ao qual o homem necessita pertencer para se livrar da objetificação tecnológica e ser ele mesmo, acontecimento para o qual o homem é convocado, pelo qual é apropriado, desde o início da história ocidental na Grécia antiga, quando o ente se fez nomear como "a-lethes", "desocultado", mas do qual, no entanto, é afastado pelo próprio ser, "des-apropriado" por ele, caindo assim sob o poder da técnica e tornando-se um indigente.

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  3. Agora temos a chave para entender a estrutura complexa de Contribuições à Filosofia do Acontecimento Apropriador.

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