domingo, 6 de outubro de 2019

EU FLUTUANTE E À DERIVA (a escolha)


A escolha não se dá mais através da repressão dos desejos, que produziu sociabilidade e ordem, como Freud defendeu em O mal-estar da civilização, Agora o estímulo de novos desejos toma o lugar da coerção e as pressões da necessidade são obscurecidas nessa sedução. Há mais liberdade na busca do prazer associada ao consumo mas o terreno continua ameaçadoramente movediço porque não há pouso estável. Tudo isso transcorre no quadro geral do "medo ambiente", expressão cunhada por Marcus Doel e David Clarke em Street Wars, Politics and the City, que Bauman adota por abranger a nova desordem do mundo, o ataque ao Welfare State (e às garantias sociais a uma vida minimamente decente) e o desaparecimento do emprego, das ocupações e de referências duráveis. Os esforços de constituição da identidade individual não arrefecem os terrores do desencaixe nem são capazes de "deter o eu flutuante e à deriva" (Bauman, 1998:32).
Bauman aponta para uma identidade fluida de indivíduos colocados na situação de "colecionadores de experiências e sensações". O consumo ávido e permanente, dirigido a sensações não experimentadas anteriormente e sempre mais intensas do que aquelas já conhecidas, resulta em uma "acumulação" que nunca é satisfatória. A liberdade de consumo da vida é permanentemente ativada na venda de alimentos, cosméticos, carros, óculos, pacotes de férias, aparelhos de ginástica etc e - aspecto sobremaneira importante, também destacado por Jameson - na oferta de estilos de vida associados às mercadorias. Esse trânsito desmemoriado no eterno presente é o de uma identidade que não se completa, numa dinâmica de desmantelamento e reconstrução que nunca alcança um ponto fixo e assombra homens e mulheres contemporâneos pela incerteza permanente e irredutível. Pode-se colecionar amores fugazes, valores temporários, enredos vagos de histórias pessoais tornadas desimportantes, consistências do "eu" sempre possíveis de serem apagadas e martírios sucedidos de novos desempenhos:
Um número sempre crescente de homens e mulheres pós-modernos, ao mesmo tempo que de modo algum imunes ao medo de se perderem, e sempre ou tão freqüentemente empolgados pelas repetidas ondas de "nostalgia", acham a infixidez de sua situação suficientemente atrativa para prevalecer sobre a aflição da incerteza. Deleitam-se na busca de novas e ainda não apreciadas experiências, são de bom grado seduzidos pelas propostas de aventura e, de um modo geral, a qualquer fixação de compromisso, preferem ter opções abertas. Nessa mudança de disposição, são ajudados e favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita, prevenindo, assim, a ossificação de quaisquer hábitos adquiridos, e excitando o apetite dos consumidores para sensações cada vez mais intensas e sempre novas experiências. (Bauman, 1998: 22 e 23)
Mas não se trata apenas de uma liberdade na "prisão" do consumo. A dinâmica dessa ordem abre portas para o desejo e a identidade torna-se empenhada socialmente na infixidez. A privatização, a desregulamentação e a diversificação ampliada produzem mecanismos que deixam para trás a coerção e as fábricas de ordem (objeto privilegiado da obra de Michel Foucault), que supervisionavam ou disciplinavam os contingentes humanos para a produção. A plasticidade do eu é passaporte para a viagem no universo do consumo, com seus "êxtases" de novas experiências e sensações que, aliás, nunca são os últimos. "Consumidores aptos" têm identidades fluidas ou, como adiciona Bauman, "o eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se - mas evitar que se fixe" (Bauman, 1998:114). O mal-estar dos colecionadores de experiências e sensações está em uma espécie de liberdade ou urgência de satisfação em vez de adiamento, renuncia ou supressão do prazer próprios à modernidade. A inadaptação é coisa de "consumidores falhos", que Bauman define como aqueles cujos meios não estão à altura de seus desejos. A identidade fluida é aquela dos indivíduos que se "auto-deletam" (como na tecla delete dos computadores) para seguir em frente:
...a imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos...Em vez de construir sua identidade, gradual e pacientemente, como se constrói uma casa - mediante a adição de tetos, soalhos, aposentos, ou de corredores -, uma série de "novos começos", que se experimentam com formas instantaneamente agrupadas mas facilmente demolidas, pintadas uma sobre as outras: uma identidade de palimpsesto. Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do que aprender, é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e pessoas entram e saem sem muita ou qualquer finalidade no campo de visão da inalterada câmara da atenção, e em que a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens, e alardeando uma garantia para toda a vida exclusivamente graças a essa admirável perícia de uma incessante auto-obliteração. (Bauman,

Um comentário:

  1. A ansiedade é constitutiva da responsabilidade das escolhas na invenção da política, da sociedade e de uma liberdade não banhada na indiferença. Esta é a principal contribuição de Bauman ao debate. A cidadania reflexiva em interações globais, o sujeito produtor de si ou a recomposição da identidade para além do mercado oferecem a perspectiva duvidosa de um pouso para a agonia da escolha. Projetos de identidades restauradas que insistem na "paz" e na "segurança" lançam para o futuro, em salto abrupto, um "equilíbrio" que pode fazer adormecer forças que só avançam na suspensão da tranqüilidade. Bauman não defende uma concepção que radicaliza a contingência em detrimento da volição organizada mas, de fato, é um autor que busca salientar a plenitude da responsabilidade moral na criação das instituições e da auto-transformação do sujeito. Assim como o longo processo de crítica da teleologia municiou interpretações férteis para tendências em curso na sociedade contemporânea, o questionamento das projeções de um sujeito serenado permite uma avaliação renovada das aspirações de segurança quando a multiplicação do desejo se enraíza nas maneiras de viver.

    ResponderExcluir