quarta-feira, 21 de agosto de 2019

AUTO-MONUMENTO

---- O que foi agora, K? o que se passa nessa sua cabeça doida? --- Sabrina perguntou, a Luz Bondosa da manhã acordando entre tramóias pela cidade, comprando e recomprando aquelas ações pelo celular. 

--- Mobília para uma casa de campo, e voltar a ler Gogól, lembrando que ele jamais teria escrito seus livros se a velha Mãe Rússia fosse motorizada naquela época de cavalos, de que falavam quase todas suas páginas-tróicas...  

O quarto atulhado de caixas de papelão balança sob minha voz, joga, entende as janelas, em seu pânico de vento. Ela fala entre dentes, com uma careta como se quisesse rir, a garganta enrijece-se. Suas palavras saem-lhe como ruídos agora mais agudos, uma oitava acima do ruído feminino de fundo. 

--- Ingredientes cósmicos: dentes, cascos, medula, coices da coragem, necessários para o emprego da literatura em processos equinociais, com maré vazante e preamar, conjunções do sol , da lua e dos planetas com todos os delírios dos loucos perdidos na rua ou no mato, devido à qualidade do líquido em seus organismos, e seus sais psiquiátricos de evocação da alma perdida, o efetio disto dentro da personalidade, já muito longe no tempo, borbulhando primitiva e ''pré-históricamente'', sem química literária capaz de ajudar-me. Não, eu não estava vivendo de novo os anos de aprendiz de feiticeiro.

o coração dos ricos,
ovo do Inferno, segundo
Murilo Mendes, 
não sabemos bem
o quanto Deus envia
de catástrofe ao interior dos ricos,
com esse supérfluo que exigem
pelo buraco da agulha
em troca do essencial, essencial
é só aquilo que lhes garante o lucro,
o camelo de seus bardos de leitura.
A leitura deve nos ler, tanto quanto
ser lida, pelos ricos, e vice-versa.
Crescemos com a propaganda,
mas o Cristo com a distinção;
antes de tudo porque em Deus
não existe Tempo, e suas respostas
não coincidem com as pergundas dos homens;
as dúvidas, incidindo na questão do ritmo:
do moralizar, do evadir-se do ''publicamente'',
e da ''guerra-a-guerra'', que é ainda
uma divisa belicosa, bem relativa.
O Cristianismo  vago e desencarnado
NÃO EXISTE MAIS, o cristão-primitivo,
rupestre, tbm tornou-se consumidor,
sem poesia ou meditação, na
Disjunção-Absoluta de todas as Igrejas
coletoras de dízimos e votos
e seu canto internacional moribundo
nas visões de revistas  do Vaticano.

''Então haverá terminado
(diz Artaud, em Rodez)
Mas não compreenderão
que a Verdade nunca mais se mostrará
para alguns que ocultam
para si mesmos, zelosos e estrictamente.
Decididamente, deixa de querer
dirigir as coisas e desejar
castigar os que te atacam,
NÃO ÉS O AMO,
NÃO SABES O FUNDAMENTAL!''.
Certo, Monsieur Artaud, a Caritas,
Caridade, por definição cristã,
é também um elemento de anarquia
dentro dela, que trai o interesse político.
Estandartizada diminuta vida
substituída por jornais 
e esforços parasitas
num corpo de hóstia comida,
satisfeito com uma câmera na mão
e a rotina na cabeça, onde
tudo que parece normal é insólito
(sendo ora sim e ora não-americano,
é antes de tudo o contra-fluxo
dos olhos atentos. Das pessoas?
Não: das cenas das sequencias dos filmes).
A lenda continua: essa sub-normalidade escrita
que uma literatura prostituta, acionada no Nada
de suas cores invisíveis, converte em ação.

 Frases, é claro que você diria isso
numa outra língua, cheia de gírias e
neologismos incompreensíveis,
um dialeto cheio de salivação.
No plano poético, o espiritual
é orgânico, Jivan e Mukta,
o homem possui entidades que
ele mesmo ignora, repercute-as
no seu som, na sua voz, na sua carne,
assim como pelo prolongamento dos contatos
e erupções de mundos dentro de si, 
lances emocionais decisivos do ego
numa lista infinita de apuros e preços 
em versos livres, a velha upaya de Artaud,
que etceterava contra toda INSTALAÇÃO
FORÂNEA, para buscar seu prórprio DE FORA.

''Eu mesmo me endureci sem comer
por sobre o corpo da máxima intelectualidade
com uma pele de sexo
e uma usina de carvão...''

Artaud administrava à realidade
uma disciplina letal contra o contato,
um anti-humanismo pleno de detournements e
traduções teorizadas no rapto das palavras
que exortava o mundo retorcido à seu ABERTO.

"O que fazer com o que acontece?
Já conhecemos o modelo do
Acontecimento-Apropriador 
(Sabrina diz, prático-política )
e o corpo pleno sem orgãos,
 que já vem perfeitamente descrito 
desde o xamanismo tolteca, 
como OVO, AUTOMONUMENTO,
e em Deleuze é produzido como 
ANTI-PRODUÇÃO: ''Ele que testemunha 
sua própria ANTIPRODUÇÃO, seu engendramento
a partir de si mesmo''. É sobre ele,
lá onde ele está, que o NUMEN
se distribui, e que a disjunções se estabelecem,
independentes de toda projeção.
''Eu, Antonin Artaud, eu sou meu filho,
meu pai, minha mãe, e eu''.


---- Modos de marcação, Sabrina? No meu caso, cada novo livro é um novo problema que se relaciona com os antigos nao resolvidos totalmente. Minha operação pelo gesto da desconstrução não se confunde simplesmente com uma "teoria" ou mesmo com um "método" de investigação textual, aspirando a se exercer no espaço prático-político. O jogo com o limite que define a escrita derridiana não seria compreensível sem o motivo do acontecimento, esse inapreensível que desvia ou persiste em resto. Nesse sentido, se há algo a apreender, a reter, no discurso da desconstrução, tal seria justamente o inapreensível. Valeria aqui evocar o imperativo de Glas: "[Ah!] você é inapreensível, [então permaneça] resto" ---


''O inapreensível não é um conceito, é um resto, o índice de uma transformação recente ou iminente. Aquilo que sobra de um objeto provoca a escrita, impõe-lhe uma lei de sui generis sustentação. Isso porque não basta declinar os sucessivos atributos fenomênicos de um ser ou de um acontecer na extensão de um corpo textual. Tampouco é suficiente reativá-los ao longo de uma contabilidade conceitual, na nomeação de um conteúdo de verdade. Responder à lei da coisa, a seu acontecer jamais disponível como tal, quiçá imponha acompanhar o "cálculo" de uma mimesis sem imitação, sem repetição e sem significação. Herança possível do que é inicialmente um acontecimento, ela somente tem futuro virtual ao sobreviver à assinatura e ao romper com seu signatário suposto responsável.

O acontecimento como acaso, risco, surge em Derrida como fundo perfeitamente opaco, inapropriável, que não pode constituir senão um limite ou uma aporia para toda apropriação responsável. Ele parece mesmo pôr em risco a possibilidade do ser-responsável, porquanto represente não somente aquilo por que não se é responsável, mas também aquilo de que não se poderia de modo algum se apropriar. Certa "inapropriabilidade do que acontece" engaja um dever-ser propriamente o impróprio, segundo uma lógica da ex-(a)propriação (BORRADORI, 2004).

Esclarecer tal tipo de engajamento  – e sua lógica correlata – implica  ressaltar o que é da ordem de uma suspensão, de uma iminência de interrupção. É o que Derrida denomina o outro: a revolução, o caos, o novo. O instável, o não-fiável, a "instabilidade do não-fiável" consiste em não consistir, em se subtrair à consistência e à constância, à presença, à permanência ou à substância, à essência ou à existência, bem como a todo conceito de verdade que lhes esteja associado.''


Uma "possibilidade impossível de dizer": o acontecimento em filosofia e em literatura, segundo Jacques Derrida, Osvaldo Fontes Filho


---- Problemas fixos por aproximação, e bons e férteis quando permitem fragmentação, rapidez, contágio, encontrando continuidade de solução em cada pedacinho do próprio verbo, meditação, ação, linhas e pontos --- disse, ainda que refletisse sobre algo importante sabia que quando um mestre reconhecia o outro, atravessavam-se suas escritas, e com Sabrina era diferente.


Eu lia Goethe, Schiller, Heine. Holderlin e Rilke, e fazia longas caminhadas. Companheiro de nossa rude fé ocidental, Henry Bergson uma vez havia falado nos três eixos rangentes , as falhas inexplicáveis, no contínuo intelectal do materialismo: entre o NADA e o ALGO; entre A MATÉRIA e a VIDA;  entre VIDA  e ESPÍRITO; este último enlodaçado de informações quanticas da física moderna. O Universo está constituído apenas de energia e informação --- suspeita em forma de padrao de onda? Propagação no vazio quantico que forma o espaço? Se por acaso não fosse assim (um universo coerente, dinamico e hiper-informado), os sistemas e organismos complexos jamais teriam surgido, e não estaríamos aqui (como indagou Pascal) para nos perguntar como este altamente improvável desenvolvimento chegou a acontecer. Até mesmo o NADA e o ALGO captam o zumbido cósmico de fundo que se origina no limiar do Tempo. Então o NADA revelou possuir uma certa ''anatomia'' de Obra Aberta, inorgânica e meditativamente vivo.


''No afã de um recorte de suficiente nitidez entre a segurança de toda filiação contínua a uma gênese, a uma genealogia ou a um gênero, e a descontinuidade do inteiramente outro, a literatura revela-se à leitura derridiana território de todas as contaminações e de todas as indecisões. Sua potência própria, afiança o autor de Genèses et généalogies..., consiste em "[...] retirar ou denegar o poder e o direito de decidir, de optar entre realidade e ficção, testemunho e invenção, concretude e imaginação, imaginação do acontecimento e acontecimento da imaginação" (DERRIDA, 2005, p. 50). Oni-potência-outra, isto é, capacidade de indistinção, a literatura incita à apreensão "não-genérica e não-genealógica" do outro como o que se passa, como o que acontece.

A literatura atrai Derrida em razão da evidência de seu "estatuto jurídico precário", isto é, de sua irredutibilidade a uma intencionalidade específica inscrita junto ao corpo social. O que em grande parte explica o direito incondicional da "literaridade" de tudo dizer: "[...] a mais selvagem das autonomias, a desobediência mesma", em toda inocência (DERRIDA, 1998, p. 29-30). Ora, se a literatura joga inocentemente em perverter distinções  – com que se compraz  uma leitura desconstrutora ocupada em desrecalcar as escolhas feitas junto a sistemas dicotômicos  –, Derrida retira particular proveito reflexivo do fato de a narrativa blanchotiana – sobretudo L'instant de ma mort, analisado exaustivamente em Demeure – dispor sobre um "limite indecidível" a partilha entre ficção e testemunho.

Esse limite é uma chance e uma ameaça, o recurso a um tempo do testemunho e da ficção literária, do direito e do não-direito, da verdade e da não-verdade, da veracidade e da mentira, da fidelidade e do perjúrio. (DERRIDA, 1998, p. 31) .

Vê-se, assim, a leitura do filósofo engajar uma reflexão sobre o direito da literatura de dispor (e de decidir acerca) das "virtualidades espectrais" e, por conseguinte, das mentiras, perjúrios e fragmentações do verdadeiro que venham matizar todo testemunho real e responsável dos acontecimentos. Com o que estimar o valor argumentativo de um rebatimento da presumida "irresponsabilidade" da ficção sobre uma "justa referência à verdade"4.

Por sua forma, a literatura é estruturada de modo a "[...] guardar em reserva indecidível aquilo mesmo que ela confessa, mostra, manifesta, exibe, expõe à saciedade" (DERRIDA, 2005, p. 36-37). Ao refletir o testemunho não mais em relação ao conceito de ficção, mas a partir dele, Derrida dá a pensar uma filiação insuspeita, secreta, entre literatura e filosofia, uma partilha da "tentação analógica" – onde sustentar a afirmação e a negação contidas num "ser como". Ao alimentar a impossibilidade de decidir se o que se passou aconteceu na realidade, "[...] se este na realidade é ainda imanente à ficção, tal um tremor da sobrecarga ficcional, um efeito suplementar da ficção" (DERRIDA, 2005, p. 19), a literatura ensina à filosofia a devolver às palavras seu poder de especulação e de imaginação. Importa, pois, considerar os efeitos argumentativos de tal capacidade.''


Uma "possibilidade impossível de dizer": o acontecimento em filosofia e em literatura, segundo Jacques Derridá, Osvaldo Fontes Filho

Matheus Dulci KM

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