--- Quer saber o resto da história, K? --- Sabrina pergunta, e volta sorrir, depois daquele acesso de raiva injustificado.
--- Diga, respondi. Então, ela profere três obscenidades que se referem à três partes íntimas de Beatriz, depois acusa Carmen de não ser culta o bastante, e à luz da tarde declinante que vem da janela, seu rosto se fecha nvamente em argumentos sombrios. Silenciosa, parece espantada com o que disse, no entanto, olha zombeteiramente, como se aquilo fosse uma espécie de testes, em que todos deviam testar uns aos outros o tempo todo. Os resultados são impossíveis de se corrigir:
---- Marquês Sade, K? Tenho uma conhecida no Rio, uma amante talvez, a quem eu pago um jantar de vez em quando. Você é tão inocente... deixa de ver tanta coisa, com seus ''de repentes'' ---, suas frases soam incoerentes, assustam.
--- Parem com isso voces dois --- grita Beatriz na porta da cozinha, misturando aflição e afeto, se aproxima e passa os braços pelos meus ombros.
--- Voce e eu somos da mesma espécie, K -- Sabrina diz, com confiança sorridente, ms eu não vejo semelhança nenhuma entre nós. Sentia falta da presença constante de Beatriz ao meu lado nas últimas horas, das nossas necessidades que se resolviam em impactos espirituais, nossas estridentes paredes próprias, esse diálogo interno sem fim. Não imaginava qual era minha relação com Sabrina, personagem de muitas das minhas reflexões, deduções e auto-acusações, todas agora superficialmente arranhadas ao contato com Beatriz, gastas rápido demais em scripts sem uso, mas, ainda assim, com instintos profundos retidos na inconsciente, dizendo -me que eu estava certo. A liberdade cercava-me com suas propostas subconscientes, transformando-nos em rodamoinhos de vento nos caminhos do espaço. Havia por ali alguns quilometros de areal branco, depois do qual estava localizada a pousada de Beatriz, entre a baía e o oceano. E ainda outra ilha diante da ilha onde ficava a pousada. As dunas da ilha se erguiam em pequenos morros, se desfazendo subitamente em vales onde o caminhante poderia se julgar perdido no deserto do Saara caso saísse para andar ao meio-dia sem um mapa. Para além desse deserto de areia branca perdido np meio do caminho, está uma aldeia de pesca que com o tempo e um pouco de cimento se tornou um distrito. Com tres quilometros de comprimento e duas ruas de largura, o distrito serpenteia envolta da ilha, uma extensão clara com tons mediterrâneos, tetos amontoados e íngremes, parapeitos para pesca e barcos pesqueiros cujo cheiro de cavala e gasolina faz pensar em whisky e sereias sifilíticas em boates de beia de estrada.
Beatriz pegou um copo de bebida do chão , rindo.
---- Quando voce voltará aqui, K ---
Eu fiz que não sabia, tirando meu novo livro da mochila.
---- DragDrukpa, eu disse. Espontaneidade Bon.
---- Há muitas maneiras de se brigar nessa vida, K, e atribuir palavras e atitudes suspeitas à pessoas inocentes é uma delas, é sugá-las com o ego, inquisitorialmente ---
--- O Vampiro é apenas aquele que tomamos por nós mesmos (eu disse) , ego usurpador de energia, instalação forânea, mente externa, inorgânico, parasita que nos ocupa. ''Eu é um outro'', na minha tradução de Rimbaud, escrevi ''Mais! qui a fait ma langue perfide tellement ?!''. Mas, voltando a nossa fábula, a estaca no peito do vampiro é o cinzel do discernimento, que ao penetrar no coração dissolve a auto-importância e as correntes mentais do mundo das pessoas são substituídas pelo puro Anatha nirvânico. Eivada de metatextualidade, a obra de arte pós-moderna demonstra ser, de fato, eminentemente alegórica e submetida, portanto, a uma estruturação de referências cruzadas. Após um ostracismo de quase dois séculos (quando quase foi considerada uma aberração estética), a alegoria voltou a ocupar o centro das atenções. Na opinião de Craig Owens, toda a arte (por que não dizer, a sensibilidade) contemporânea possuiria um incontestável tom alegórico que se manifesta, entre outras coisas, numa opressiva tendência a 'reativações' do passado e da história (bem visível, num primeiro momento, na prática arquitetônica). Em um estratégico ensaio, ele busca avaliar esta tendência emergente e determinar o alcance de seu impacto na teoria e na prática das artes visuais. Se concordarmos com Owens em que "a alegoria se verifica cada vez que um texto tem o seu duplo num outro" e que "na estrutura alegórica, um texto é ‘lido através’ de outro, por muito fragmentária, intermitente ou caótica que possa ser sua relação: o paradigma da obra alegórica (sendo), pois, o palimpsesto, a arapuca. Poderia seguir com todas as topologias e analogias do vampiro e da estaca, para defender a essência do meu livro, mas acabaria criando novas fábulas instantâneas, e sua apreensão aumentaria assim que Sabrina voltasse.
---- Que se passa, K. Já estou aqui, do que falam seus pensamentos? --- ela perguntou, assim que eu me levantei para abrir a janela e fumar. Ao fundo dela, na janela, a praia e o farol. Percebi subitamente, numa relanceada troca de olhares mudos com ela, que não é definitivamente do espírito destes nosos enfatuados anos, preocupados em manter o Ser no esquecimento, dispostos numa falácia patética, colocar a equação dos diálogos civilizados acima do animismo do vento. Naquela casa a beira mar, ser tempo era ser espírito, geist, demiurgo de coqueiros e silencios, evidentemente existencialista, místico, em guarda.
---- Quando o vento tiver um grito significativo aos ouvidos humanos (eu disse), será mais simples acreditar que o Ser voltou a pastorear-nos, mais simples acreditar que os mistérios do murmúrio crescente do furacão não se reduz à uma simples colisão aleatória de moléculas insanas. Exatamente por isso, voce sente essa frustração repentina, em busca de meus pensamentos. Eles vão no vento, que sabe tanto e nos pode dizer tão pouco....
---- Tempo e espaço não se dividem de Eros, K --- Sabrina disse ---Juventude- maturidade para o arco de Eros. Algo que não implica complemento, mas fundamento. Verbo -Ação-Fundamento das pulsações do símbolo, dos números, das cores e duplicações e superposições determinantes das imagens, disposição, designação de pedra ou metal sob o signo escandaloso de Eros, sob a inspiração das formas e reconciliações econômicas, também, sociais também mas sobretudo as versões mais opacas de seus medos, desse motor de medos botando preço na matéria inerte do mundo, esperando o golpe ritual de alguma metamorfose, algo como Eros --- impacto de equação-limite no presente do espaço-tempo não-euclidiano --- formigando até nos preços, concluiu ela.
Matheus Dulci
KM
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