Enganosamente complexos, conversando a sós enquanto aguardavam seus respectivos drinks, o vento erguia um cerco a nossa volta, e não havia necessidade de falar nada, porque ali palavras eram solidão (eu me repetia) e talvez não se escape ileso disto com tantas palavras para caneta-las e esquecer logo depois de escrever. Ler ou reler faz subir a pressão depressa. A respiração dela, arquejante devido ao esforço de correr morro acima lendo-me e relendo-me, era deliciosa: o gosto da juventude renovada pela palavra e o tantra, num novo esboço da vida, palavra de escritor como ela era saborosa, poluída ou purificada por mim, florescendo num corpo e num coração desde o início do nosso amor sempre assim, as palavras criando um tempo ali onde não havia necessidade do tempo, onde eu tinha me tornado um atleta das palavras, forçando com elas horas a mais todo dia de uma autêntica segunda vida espectral, fora do tempo, sem precedentes ou prenúncios de pressas fingidas, místicas, como se tudo fosse escrito com chumbo e leite de urgencia misturado, osga! , umbigando todos os princípios vitais da mente no limbo. Carnes que muito pensavam se reuniam ali, se criando desejos de fumoir e esposas renascentistas, apaixonadamente repousante entre um e outro número, o Limbo. ---- Ela faz trabalhos de Batik também, eu disse ---- Quer experimentar um cigarro búlgaro? --- o ser-aí de Sabrina --- Qual é mesmo o nome daquele movimento que gosto tanto? SCHERZO! Isso mesmo, respondi SCHERZO. O celular nas pontas úmidas dos dedos -- porra, que presente para mim, que surpresa, com essas astúcias de fixação ---- que diabos significa isso? hoje em dia em pé de guerra com o resto, Sabrina também evocava alguma coisa além do pensamento lógico, acidências importunas, talvez inevitáveis, em cartografias internas além da sensação, imagem indefinível que a boa literatura perseguia ali, convocando às nossas mentes sugestões intraduzíveis que não brotavam do sentido lógico, mais paralelas que vinculadas ao prazer sexual. --- É VOCÊ É UM SONHADOR, K, disse Sabrina , ela costuma fazer o sinal de paz e amor com os dedos, depois os transfere para a cabeça, mostra a língua pafra a tv, é toda ela quando fazendo isso na curva do quarto, onde eu parara agora. Fumo. Desperto a tempo de anotar tudo, o Alfa e o Ômega, da vista, diretamente pela janela múltiplos cargueiros deslizando no mar da Baía --- Vida é Mudança, Movimento, Indagação e Salto Originário ---mas nenhuma pressa de conclusões, na tarde extra-terrena cintilante em que tudo conspirava para reter-me, a meio caminho entre a harmonia do Vazio Absoluto (Sunnyata) e a trapaça dos entendimentos intelectuais excessivamente ponderados, como em Derridá minha comida lésbica, dopada e sem salvação, cuja súplica equivocada luta contra todos os assuntos em bloco. A Língua, tentando pensar no que dizer... desejos impuros começam a assaltar meu abdômen. Muito diferente, comigo. Eu ''bonzinho por pura soletração de si'', e ela, se achando mais que as outras. ''Nos visos...'' . E agora também um personagem traidor, sem conseguir dormir, nem meditar, nem escrever, que apenas vegeta tenebrosamente , com um brilho de anêmonas sob a lua nos olhos, a verdade começando a passar inteira através da mente. A idéia penetrou também o coração dela em cheio, como um bebê, e eu gelei, não com pensamentos do cérebro, mas do sangue meditado. Ela tranquilizou-me: --- Não tem nada disso, K. Chega desse assunto de pintar pensando sobre pintura, o que acontece com as artes hoje em dia é desanimador, mas só para os ambiciosos. Gente como nós está cativa de outro delírio --- ela disse ao pé do meu ouvido, mudando de assunto rindo e entrando numa espécie de sexto reinado da voz, muito além da indignação, do projeto e da confidência de há pouco. --- Sempre ergo-me , lento, nessas ocasiões, preparando minha imitação de um aristocrata inglês pronto à ensinar uma lição ao mundo. Por exemplo: de que a chave da sensibilidade de nossa época, em pleno século XXI, ainda seja um punhado de obras literárias e filosóficas escritas entre 1915 e 1930. Pois nem o surrealismo e o existencialismo francês acrescentaram nada às caracterizações heideggerianas presentes em Sein und Zeit. A imagem definitiva de nossa miséria social e cultural ainda pertence à descrição da cotidianidade em Ser e Tempo e aos febris comentários de Walter Benjamin em ''Viagem Através da Inflação Alemã''. Quanto ao amor, Proust esgotou o tema como um carniceiro maníaco, fixando para sempre sua Facies Hippocratica. E o que dizer de Kafka e James Joyce (?) Nos tiraram qualquer possibilidade de descoberta. A literatura que veio depois se limitou a revisitar atmosferas psicológicas passadas e a registrar ínfimas variações daqueles temas. A explicação para isso é que as experiências-limite da elite-intelectual dos anos 1930 deram lugar à experiência das massas. Nos cumes inacessíveis do pensamento, onde o nada e o misticismo mudo afivelam sua máscara inexpressiva de olhos chamejantes, o filósofo e o poeta de vanguarda encontravam-se agora na companhia de uma interminável e barulhenta massa sem autoridade espiritual, cuja sensibilidade nunca prometeu nada além de grunhidos ---- olhei para o rosto de Sabrina e ela me pareceu alguém que tivesse passado tempo demais ao vento, os pensamentos varridos num arraso, sem piscadelas de olho com a noite, um brilho forte nos olhos também e os lábios esticados sobre os dentes, como um esquiador numa curva apertada . Não exatamente renovada pelas altas analidades da crítica especializada e distribuidora de prêmios, sem fôlego para o DE FORA, e para uma literatura insuportávelmente paranóica do início ao fim. In ''Several Times''', com dramáticas exceções com trânsito em julgado a favor, mas ainda na biliosa esterilidade dentro desta crise total do ser humano que vivemos hoje, em função deste arco gigantesco que começou com o Cristianismo e depois seguiu com a Europa, injetando na aventura épica inquietudes mais psicológicas que metafísicas, até chegar à carnatura textual totalmente atéia do Roman Noveau e aí, de bote, todo o desalmar literário no medo ao desconhecido se saindo inteiro e propositado no novo padrão-livro pequeno-burguês, mais bem recolhido no vazio maquinal e ruminante da Cultura destes tempos loucos, do que no seu antigo ''asp´ro de etceteras''.
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