Matheus Dulci, KM
sexta-feira, 23 de agosto de 2019
CONCERTO MONSTRUOSO escrevendo ao som de
Concerto monstruoso cuja música extravagante era absurda e abafava o rangidos dos guindastes do cais, o barulho do trânsito, os apitos dos navios e e a gritaria das pessoas a minha volta. Acendo um cigarro e fico parado ali, não sabendo se é o perturbador que é belo e triste ou o irreal um calor de sangue adocicado elevando-se das salas subterrâneas e armazens de tráfico de animais silvestres: um bafo de sangue animal paira sobre a cidade inteira, como uma carniça. Tudo é calculado em quantidades enormes e multiplicado ao infinito de maneira esmagadora, por assim dizer, nada tem mais os nomes e referências sabidas, a unidade do mundo como algo sem nada em especial que a distinga de qualquer outra coisa. Mudo de via, depois, por um pátio interno até um ateliê, com um a grande janela aberta permitindo ver a praia até o horizonte, lá embaixo. No cavalete, o retrato inacabado de uma garota sentada nessa mesma janela. Pinceladas recentes, cujos traços lembravam Sabrina debatendo-se para emergir das névoas. ao lado, havia uma mesa com antigas manchas de tinta , onde estavam uma palheta retangular coberta por uma tinta brilhosa. ---- Eis o retrato dela --- o sujeito disse --- tirando a tela do cavalete e entregando para mim. ---- São quinhentos reais --- ele disse. ---- Mas é um quadro de memória, meu irmão. Trezentos! --- respondi. --- A praia adiante coloca minha voz no mundo, sem rodeios, ''Deus ataca bonito'', ''mão de homem para o manejo quente'' ... ''e eu ainda sorteio de acender essa zona, ai, se, se !''. ---- Mas é a única de memória na qual tenho trabalhado, trezentos e cinquenta --- na minha opinião, ti nha conseguido efeitos parecidos, e lembrei-me vagamente do elogio que Zolá fez a uma tela de Monet : ''uma mulher vestida de branco, sentada à sombra da folhagem, com seu vestido borrifado por pontos de luz como se fossem grandes gotas de água''. Agora, e tenho que passar no supermercado, com o quadro debaixo do braço, pela rua. Tinha jurado economizar na palavra amor, mas o escrito até aqui já parece leviano o bastante para suportá-la, seria impossível escrever sobre outra coisa. Eu tornara-me seu ídolo! E algumas vezes ela tinha verdadeiros cuidados de velho comigo, como se a qualquer momento eu pudesse me partir em pedaços. Mas pensemos no amor aqui como um gênero indescritível da força de gravidade; não uma força bruta, exercida pelos planetas em suas órbitas, mas simplesmente, einsteinianamente ali: uma propriedade matemática cósmica do espaço em si. Seu rosto tornara-se uma treva luminosa, seu corpo, um ímã que o biquini apertava tanto que faria arder um santo. Sua voz flutuava para fora e para cima da delicada rede de luminosidade de seu rosto. Profundo interesse em exceder-se ternamente, ao longo do almoço alegre, acolhido com humor. É possível que a música extravagante do começo não tenha parado de tocar até agora... estava ouvindo-a quando tirei o quadro do papel, gerando uma oceânica inclinação à assuntos profundos, nas cadências marinhas da reserva vencida. Habitualmente, o celular de Sabrina era um amigo querido, que muitas vezes tornava-me bem mais do que eu realmente era, no momento, como diante daquelas lagostas trazidas de um carregamento do alto-mar para ali, nossa mesa de pratos franceses caríssimos, nossos ossos não de todo livres do Mal, no qual poderíamos continuar ''morrendo de amor'', ainda mais gotejantes de vocações, ao apodrecer--- gotejamento de planetas em volta de uma estrela de dentes --- ''mão de homem para o manejo quente'' ... ''e eu ainda sorteio de acender essa zona, ai, se, se !''. --- Depois ''Deus ataca bonito'', explodindo as costuras da alma, derrubando coisas abandonadas na memória, desabando violentamente sobre a obscuridade e aniquilando-a. Um movimento agudo de corpos fazendo-se, espessando-se, até tornar-se um incêndio, uma recordação da origem do universo, que a mão levantava das águas primordiais, até tornar-se um ruído de ossos, um pegamento de carnes, em meio aos disparos de fluidos bucais.Dentro de mim, experimenta ver! furacão de esperma invertido subindo ao invés de descer, espalhando suas á´guas incendiadas pelos meus órgãos. E paramos ali? ''E eu ainda sorteio de acender...'' ''Não vá pensar em dobro'', ainda nos encostando em alguns pontos à medida que a vista vai se adaptando ao mundo fora do beijo, vejo no rosto de Sabrina o tom suave, melífluo da Via-Lactea Suas pálpebras fechadas, sua boca aberta, como se ainda em transe. De repente, sorri, um lindo sorriso feminino, sem sombras. O que é mais feminino nela , além do rosto, é a largura das nádegas, os calcanhares e o branco das mãos que, como um lírio, paira ao lado da minha calça no ponto mais visível da minha protuberância. --- Isso é tão bom ! --- diz ela, mecanismo entrelaçado de sedução e volúpia, feito para estrangular em silêncio. Está no quarto fixando o quadro na parede, martelo apoiado na coxa, numa semi-posição de yoga que deixa a mostra os fundilhos de sua calcinha de renda preta. A madeira clara brilha como uma mulher que passou óleo no corpo após o banho. Há uma partitura na colcha, ao lado de seu tornozelo. Fecho a porta do quarto com cuidado; atrás de mim e, numa voz trêmula, digo à ela: ---- Como Ellemire Zolla, certo? Nascido muito tarde num mundo envelhecido demais, uma ''Dysneilândia em metástase''. Devia ter nascido na Idade Média, lascivo de Ars Dictaminis, ilha iniciática fabulosa da história humana, A Idade Média ajustava minha fé ao rosto trouxa do mundo, com meu esgar de bruxo. Ou nascer na Índia também teria sido uma boa, nos visos, antes que a democratizassem socialmente ou a socializassem democraticamente, era comum lhe felicitarem por voce advertir e proclamar sua prórpia divindade em público. A cada vez que ando pela Cidade Baixa volto com a sensação de que estou me transformando em Deus, através da superconscientização, bom e honesto na luta contra vagos sonhos de consumo, que querem anestesiar a espinha dorsal da Cruz iniciática --- digo, e espero um segundo para que ela retruque --- Qualquer vestígio de tranquilizantes na sua mochila é impressão minha? --- com seus lábios agora imperturbáveis, após a aproximação ---- Foram meses de prática meditativa intensa --- me defendi , mas seus olhos negros em que a íris se fundia com a pupila estavam mergulhados num desafio mudo e subconsciente, tão denso que lembrava o tom de folhas de árvores no escuro, um negror esverdeado e inquieto, ocultando multidões liliputianas de vozes, uma floresta mental microscópica e invisível de onde , a qualquer momento, partirá um bombardeio. --- De onde você está surgindo, K? --- Sabrina perguntou, e lembrei-me da banca de jornal, do banco, do cafezinho no balcão da padaria, depois caminhando alguns passos para frente na direção de casa, olhando o mundo em volta com olhos de jornal. A calçada do Rio Vermelho refletindo o brilho do sol , e uma irritabilidade translúcida, de chuva prestes a cair, dominando o asfalto, as arvorizinhas magras, a linha do mar atrás dos prédios e as casas baixas que parecem um quebra-cabeça de cimento, tijolos e pedra. ---- E o telefone tocou enquanto voce se teletransportava para o shopping? -- ela questionou --- Foi de lá que voce me escreveu ---- concluiu ela, denunciando meu lapso oligofrênico com gravidade. apertei os dentes dentro da boca, com vontade de quebra-los. Deitei na cama rendido, em silêncio, com seis delegados de polícia conversando com seis psiquiatras dentro da cabeça, e sentindo logo depois um estalo atrás da boca, num osso da mandíbula. Imóvel, apertava os dentes até imaginar as silhuetas dos meus caninos se curvando dentro da boca como numa radiografia. Os olhos dela se alargaram um pouco, mínima apreensão, percebo oque percebo e o que causo. E estou causando, estou causando tudo, todo esse ir e vir no tempo , que certamente nos torna mais bonitos. --- Espantada de me ver depois de tanto tempo --- perguntei. Ela quis olhar-me desconfiada. Depois, para algo insólito, atrás do meu ombro esquerdo. Esquivava-me furiosamente daquele flash-back, enquanto olhava para trás, na expectativa de tomar uma paulada na cabeça de alguém desconhecido vindo da rua para ''me deter''. Mas não havia ninguém, nem estava acontecendo nada. ---- Não lembra de mim? --- Deus do Céu, Entra! -- ela disse, logo depois : --- Voce não mudou nada. Quantos anos? --- Agora que podia vê-la melhor, lembrei da singularidade dos seus olhos, que residia no fato de ser a íris tão negra quanto a pupila, dando-lhe ao mesmo tempo opacidade e penetração. --- Há quanto tempo está na cidade? Mochila de garimpo e caderno de notas? Hahahaha Atrapalhei alguma coisa? Sua mão? Sua cabeça? ---- ela diz, antes de começarmos a falar de meditação. ---- Estive meditando -- ela disse --- Meditando sobre oquê? -- perguntei ---- Não sei, ainda não tomou forma, não se materializou --- na verdade, ela própria parecia não ter se materializado direito: havia algo transparente nela que cumulava o vento com carícias de cortina, no sofá da sala, que não me lembrava nenhuma primeira juventude de pelos púbicos arrumados em volta do pau. Marasmo lento, pensei que ela ia fechar os olhos e dormir na minha frente, aí a imagem dela no meu passado voltou à superfície da minha mente renovada, cheia de exclamações infantis, e de mãos e carinhos e da pele dela sob as roupas atuais, e de sua voz adolescente erguendo engenho de musa, no silencio do apartamento. Lençóis brancos batendo no braço do sofá: o último êxodo rodopiante de estrelinhas pintando seus olhos entorpecidos, mas com uma luz fraquinha ainda pela janela, suficiente esperteza para recobrar-se e, diante de si, enfrentar o castelo kafkiano da tarde, subitamente em estado de jina no outro extremo do pequeno espaço da sala, Dasein aberto como lata de atum, à luz de uma lâmpada que parecia abafada por mantras, um triângulo de luz branca em dose homeopática, rápido como um clarão, ritmando a iniciação à voz do silêncio. O mundo aparecia no sofá em que ela ainda estava deitada e desaparecia da vista com igual rapidez, às vezes ela fazia e às vezes não fazia parte do ser-aí do mundo, por isso meu rosto ardia como o de uma alma penada.
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