Toda molhada embaixo, parecida ao mais largo beijo de nutrição fixa em seus domínios de sexo líquido. É engraçado que ela ponha o sutiã antes de vestir a calcinha; quando ela veste a calcinha, tenho a súbita consciencia das pernas dela como coisas separadas, rolos cor de rosa torneados e líquidos, que ondulam para baixo até os tornozelos, recebendo luz rósea do reflexo uma da outra. Ela se move lenta , e diante de mim o domingo é um fato também lento, deflagrando-se contra o ar nos fios ondulantes dos cabelos de Sabrina, na herança insone daquela úmida madrugada mental, liquefeita com sucesso sob nossas pálpebras. Um belo domingo católico e colonial, em meio a um população pitoresca. O Corredor da Vitória está vivo e tranquilo lá embaixo , sob as sombras de velhas árvores gigantes e prédios antigos. Os sinos de uma igreja tocam estrondosamente. Vou até a janela e levanto a cortina alguns centímetros: o rosáceo da igreja está apagado e o sol resplandece numa fachada azul, lançando a sombra do campanário no chão, negativo fresco e reduzido da manhã, onde estão alguns senhores com flores na lapela a conversar com panfletos de oração na mão, entre muitas ovelhas comuns, eles se destacam no porte e na atitude. O rebanho vai entrando na igreja de cabeças baixas, enquanto o pensamento de que aquelas pessoas tiveram a arrojada idéia de sair de casa cedo para ir rezar ali me agrada e tranquiliza. Curvo a cabeça de olhos fechados, num gesto tão discreto que Sabrina não o percebe. ''Ajudai-me, Cristo. Perdoai-me Apontai-me o Caminho. Protegei A B , C , D etc até Z... perdoa também a todos os outros. Amém. Tenho a vida perpétua, e para onde aponta o Senhor planto raízes, ou por fantasia ou cegueira decido deixa-las... digo: Cristo ou Anti-Cristo, sempre os dois. Quero as cascas do meu prazer de criação. Criar é uma terrível agonia e insuportável sufocação, como escreveu Artaud em Rodez --- uma loucura controlada que requer muita energia para ser praticada com êxito. Um dever e um martírio, continua o desfalecido Artaud cedado em sua cela --- um dever e um martírio sem alegrias para si mesmo salvo os estados de graça, e isso é tudo. Um padecimento sustentado pelo ópio. A compreensão se encontra em gozar obscenamente sem retroceder totalmente o que se quer destruir para transformar ópio em merda. Quanto aos padres, riam-se, são '' coágulos renascidos que com o tempo quiseram recobrar a ilusão , o reflexo do azougue... os cristãos abusam de meu desengano frente a tudo para arrastar-me pra fora da carne produzida pelo meu próprio esforço, o sexo sobre o sopro à direita, tijeras. -- Busco uma natureza mais bela que o insólito. --- Minhas filhas pelean a cuchillo, são descaradas com o mundo, cuando se las enmierda ponen mi nombre y su culo de manifesto, não temem falar descarnadamente nem de denunciar a verdade da verdade''.
Saindo do quarto para a cozinha, naquela manhã que, pela janela da varanda, se anunciava como um dia inteiro de praia, eu me mantinha atento, às vezes meramente desconfiado de que ''aquilo'' não podia continuar, mas continuava. O tecido do campo que eu explorava era contínuo, sim , mas ameaçava erodir-se a todo instante --- nenhum murmúrio, nenhum sinal em forma de sulco na estrada vinha separar o território erodido da água que ali corria e corroía. A vida vinha ficando vazia de mantras, e a cabeça disparava a distâncias cada vez maiores, em busca de um novo. Abrindo o jornal local que enfiavam debaixo da porta todo dia, eu procurava um assunto no qual ''fixar minhas vertigens'' -- Je fixais des vertiges - Ce fut d ´abord une étude... ---- então, em alguma parte da leitura minha cabeça crescia e atestava o mundo como acúmulo de sonhos mal construídos, que a própria vida engendrava numa assembléia aérea cheia de choques entre crânios. Outra voz, porejada por todas as encruzilhadas órficas, brotava de mim para dar cabo do ataque. Aquela nova canção vinha entrecortada , saindo de sob a pele, à medida que Sabrina se re-materializava naquela sala após o resto de sono de seus bocejos, de seus rastros de fumos marinhos, sereias e cercanias. O Vazio ali girava feito uma roleta.
---- Pode acontecer quando menos se espera, de aparecer uma foto-novela do caso no Facebook. No fim de uma festa, a gostosa que o casal conheceu fez amizade e pede uma carona. Nada é inesperado no caminho. ;o convite para um drink a mais é obra do parceiro mais exaltado, e denuncia sua necessidade de ''suplementos''. Sem beber demais antes, ainda assim certo esgotamento nervoso pode ser constatado no desejo de buscar uma ''aventura sexual exótica''. Entende, não é tosco? Com a concordância dos três, a coisa até ganha um colorido especial , voce sabe, a pessoa fora do círculo de relações é a prostituta, é assim que rola. Por trás de um ménage, sempre há dinheiro envolvido. Se for público, nem se fala'' ---
O hálito de Sabrina me falava de café sem açúcar e cigarros, conhaques caros, ''aperitifs'', Pernods e cocaína perfumada. Viva!
---- Baudelaire foi o Poeta Das Prostitutas ----
As pernas levantadas no sofá, olhando para o teto, ora para mim, ainda que praticamente gemesse ao pronunciar as palavras, era bom, uma demonstração apropriada de sincero vazio, na estranheza das intenções. Parecia contar melancolicamente percevejos na parede --- sua mente conservada naquele negócio íntimo sem nome, falando com aquela voz que sempre desejamos ouvir trepando com uma mulher.
---- Baudelaire foi o poeta que buscou o Demônio através do uso das palavras. Em a Bela Nau identificou a mulher que admirava à um navio, e em seguida à um armário. TEU COLO ARFA SOB O TRAJE FLUIDO E VÁRIO / TEU COLO VITORIOSO É COMO UM BELO ARMÁRIO / CUJOS CLAROS GOMOS CONVEXOS / COMO OS BROQUÉIS CAPTURAM RÚTILOS REFLEXOS. / PROVOCANTES BROQUÉIS DE AGUDAS PNTAS ROSAS! / ARMÁRIOS CHEIOS DE IGUARIAS PRECIOSAS / VINHOS, PERFUMES E LICORES / QUE O CORAÇÃO E A MENTE INUNDAM DE TORPORES. O poeta e o leitor vão dos seios da mulher à nau, o navio, o armário e seus efeitos, daí os broqueis, perfumes e licores... tambem no poema O Perfume o cheiro do almíscar é sutil e estranho encanto que transfigura em nosso agora a imagem do passado. Por isso remete ao corpo, aos outros cheiros, cabeleiras, alcovas, roupas íntimas de mulher, umidecidas... Baudelaire foi também , por isso, o poeta das sensações vivas, cheiros que são cores, que são sons, que são lembranças e emoções. Seu poema Correspondances desemboca diretamente no Sensation de Rimbaud.
Sensation
Par les soirs bleus d'été, j'irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l’herbe menue:
Rêveur, j’en setirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.
Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:
Mais l’amour infini me montera dans l’âme,
Et j’irai loin, bien loin, comme um bohémien,
Par la Nature, – heureux comme avec une femme.
Mars 1870.
Nas tardes de verão, irei pelos vergéis,
Picado pelo trigo, a pisar a erva miúda:
Sonhador, sentirei um frescor sob os pés
E o vento há de banhar-me a cabeça desnuda.
Calado seguirei, não pensarei em nada:
Mas infinito amor dentro do peito abrigo,
E como um boêmio irei, bem longe pela estrada,
Feliz – qual se levasse uma mulher comigo.
Março de 1870.
Sabrina voltou com outra voz, após concluir a leitura do poema. Eu continuava com o jornal firme entre as mão, comprometido em lê-lo e ''atesta-lo''. Flecha e suporte, eu transformava cada pausa dela numa espera erudita, sangue borbulhando na expectativa de quaisquer sementes. Contido até que encontrasse o espaço de choque onde ela decidira amarrar tão fundo a intriga daqueles elementos que, sob a luz do sol, vinham tornar visível sua entrega à cena alaranjada, cor de praias do Norte, o tom vermelho-alaranjado de uma atleta, de um jogadora de vôçei de praia.
---- Acho que se você tentasse se tornar delicada de um hora para a outro, eu até me ofenderia --- eu disse, passando mais uma página do jornal. MERCADO.
--- E que homem quereria isso, em mim ? quando um homem está ardendo de desejo, ele não quer sentir a delicadeza de uma alma feminina. Ele quer apenas ''ver coisas'' -- ela disse
Via-se agora o pó no seu rosto, aquela poeira de estrelas que ligava seu Oriente, onde a luz recuava em pequenos reflexos de suor brilhante, close up úmido , a voz mais sinistra do que nunca, representação latejante da cobiça, charme de recém-casada, no desquite total da realidade baixa das coisas.
---- Certas coisas só servem para excitar-nos no cinema, Sabrina disse, do lado de fora viram papo sem qualidade, de vocabulário pobre e impliquento. Esses seus segredos de alcova, esses seus relatos de ''coisas que podem acontecer naturalmente'', narrando cada passo das investidas, projeta um clima favorável para muitas formas de expressão novas, que alguns pretendem até utilitárias, no sentido maior da possibilidade de aquisições e acordos. Eu também escrevo as minhas, mas mulheres adoram mudar de opinião de um hora para outra, e perdem a ocasião ---
A luz lhe era agora incrivelmente favorável. PERSISTIR ERA FAVORÁVEL!
Não se tratava de um acontecimento preciso, mas da ambientação de uma vaga paisagem vociferante, e desta vez talvez não fosse exatamente uma hist´ria de peripécias atrativas. A narrativa não tinha nem mesmo um começo certo: nada a pontuava, definia ou aumentava seu interesse ao longo dos parágrafos. Apenas, de vez em quando, imagens brilhavam fazendo lembrar reflexos de ondas nas praias do Flamengo, até a Sereia de Itapoã, onde seis anos antes eu havia passado uma semana de férias num flat de vidro preto, visitando essas mesmas pessoas.
A maneira de falar de Sabrina naquele momento me recordava a ondulação monótona e vaga das ondas do mar à frente, o mesmo que citei acima, mas aquela paixão de falar suave e pausadamente, tinha desaparecido dela logo nos primeiros minutos da conversa, assim como na festa. O que ela falava agora tinha um acento bem mais sincero e aflito. O que saía de sua boca era dava a impressão de uma força tentando me atrair para dentro da areia, de sua sombra, aspirando os pensamentos. Uma lógica implacável paralisava meu coração, impregnando a narrativa com sua fritura de frases feitas.
Sabrina olhou para o relógio amarelo que tinha pulso. Eu queria muito que ela se abrisse comigo sem medo, naquele momento, mas só se antes eu estivesse seguro, inclusive do tempo de duração do encontro, como ela, faltavam apenas tres minutos para a uma da tarde... o que estava se passando comigo era também torpeza nela, no meu exílio boêmio no Rio Vermelho , onde aprendera a cuidar da minha própria casa, e a produzir minha obra como suplemento da minha vida.
No fim do dia, após um longo cochilo, nos olhamos fixamente com uma expressão irônica que significava EU CONHEÇO VOCÊ toda vez que ela discutia o comunismo atirando mostras putrefatas de militância nas redes sociais , ou quando a podridão da esquerda avançava sobre a sociedade, a ponto de se apropriar do discurso em algumas frentes. Um olhar caramelado, de ironia festiva, que começou no dia que ela fingiu estar grávida de mim e telefonou para um monte de gente.
---Um coisa que queria te dizer, K -- -ela disse - --- e perdão se estou me metendo onde nao fui chamada, mas espero de voce sempre precauções contra enrascadas, o passo tranquilo e soberano do vampiro ''à margem do tempo'' e a-histórico em sua alma sem cronologia, onde os conceitos foram substituídos pelos arquétipos. Elle est retrouvée. Quoi ? - L'Eternité. MAS VIREMOS A PÁGINA! Veja o que nos diz Shakespeare: a face do céu se ruboriza! Sim, diante de semelhante obra, o universo se aflige e assume um aspecto sombrio. Murilo Mendes tem poemas incríveis sobre o Juízo Final, de sua fase Esaú e Jacó de entronização católica, e antecipa seu amigo Umberto Eco, em Apocalípticos e Integrados.
Sabrina afligia-se sinceramente com o alcance culto de suas aflições. No começo, eu achei exatamente isso: projeções de imagens que desarranjavam o sistema nervoso de um jeito cult, com precauções de gosto e futilidade de ensaio de moda, nada mais. Limitei-me a tirar umas fotos dela, nessa ''ambiência'', e postei junto das traduções mais recentes.
KM
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