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Deitado e já de banho tomado, contente de tocar com a ponta do dedo o seio de Sabrina, tive aquele conhecimento que cai como chuva, pois compreendi então que o amor não era um dom, mas um voto. Somente os bravos viviam com ele por muito tempo, e minha hesitação vinha de uma vaga indicação disso: tive-a com Beatriz, mais recentemente, e com outras, conhecidas e jamais vistas novamente. Via-as depois no fundo de um garrafa dentro dos meus olhos, enquanto escrevia a respeito. Sempre a mesma coisa, AMOR ERA AMOR , não era possível refinar muito a coisa, encontrava-se em qualquer parte, mas era difícil mante-lo. Pelo menos assim, alcançávamos a instantânea sensação do mar noturno, fluindo com suas algas, profundamente um no outro, como um longo fluxo de recordações, fluindo e correndo com o UNO até tarde da noite. O Indiviso, o Tao --- os rastros de seus restos nas poças e nostalgias das enchentes psíquicas (o humano susto avulso no lençol de linho de pele estendendo-se em Sabrina, com toda uma inauguração de éticas novas, de passos bélicos expostos ao repúdio, o arrivismo social da Coisa, à borda de tantas contestações estanques. Sabrina sabia afastar de tudo isso os olhos. Suas mãos e rostos se vestiam com a tentação do ''luxo roiginário'', do salto alto heideggeriano, do Ursprung da carne afornalhada no poema, assediando seus fragmentos sitiados pela Doxa. Não se dobrava ao caos alheio. Alegoria que resistia à própria história fazendo-a, estimulando cada uma de suas réplicas a rarearem-se engajadas na AÇÃO IMÓVEL. Um revés para Sabrina?, como personagem?, para seus punhados de múltiplos incertos, suas duvidosas abstrações aquarteladas na sua constante revelação de figuras, diálogos, pretensões, fixações, de um jeito tão livre de cortes que me fazia estremecer sob o sol forte daquele momento. Ela olhou para o relógio de pulso Cartier e notou que já eram quatro horas da tarde; eu, em compensação, senti que minha vida agora era buscar e trazer coisas, notícias e pesoas, e concertar confusões, Sabrinas, tramas que surgiam gota a gota, não me cansava de faze-las e desfaze-las. E me parecia repentinamente que estava amarrado a uma porção delas, como a brinqueos quebrados, abandonados, entre as pessoas. Mais tarde, copos cheios de bebida, de televisoes ligadas que eram rostos ao vivo inquirindo e polemizando meus limites, como Res Publica. Mas percebia também que me seria tão fácil sair disso quanto tinha sido entrar, esse era meu trunfo. Sair da Babilônia intacto, tântrico esplendor sumindo para longe, em busca da albergada linguagem que o permitiria ir ainda mais longe. Embora duas margaritas para nós tivessem sido inofensivas até então, provavelmente estavam mais fortes do que pareciam. E também, ainda não havíamos comido nada. Havia no quiosque , além das carnes, uma peça inteira de presunto de Parma, paezinhos temperados, brounies, iscas de vários tipos de peixe, sushis e temakis, tábuas de queijos frios e entradas francesas, com camarões e scargots, e uma fileira só de patês e mostardas coloridas. tudo num buffet armado sob toldos de lona italianos. Meu apetite havia tornado-se monstruoso, pouco antes de ir embora. As outras meninas arranjaram caronas com facilidade, no estacionamento lotado. Um uber nos levou pela lagoa salgada de água escura, ainda muito lodosa a direita, inchada e riscada pela luz dos postes. Não sei o que me veio a cabeça com aquela visão escura e rápida, enquanto o carro manobrava, tendo agora somente eu e ela como passageiros, mas uma grande exultação psico-lúbrica, descida do céu, animou meu corpo. O verdadeiro e o falso amor, passando pela ponte. O pôr do sol frio à direita, fecha a cena da luz declinante.
Hora do crepúsculo: azul-índigo, água de vidro, árvores tropicais liquescentes na sombra, os carros desaparecem entre suas próprias luzes sob o viaduto, na Avenida Garibaldi, a comprida lagarta de metal, esmaltada de aço, mergulha como uma montanha russa: não é Paris, não é Buenos Aires, não é Coney Island. Salvador, naquele momento, é uma mistura crepuscular de todas as cidades grandes litorâneas da América Central, no filme da minha cabeça: céu de fogo limpo de onde foram varridas as nuvens mais felpudas; coqueiros magros infinitamente esticados, suas folhas largas gesticulando como sonâmbulas, sombrias e espectrais, troncos riscando o nada na vertical, e um silencio supremo e absolutamente europeu dentro do carro. Do lado de fora, muitas persianas cerradas, lojas fechadas, brilhos vefmelhos perdidos aqui e acolá, no transtorno paranoid do comércio de rua; fachadas bruscas, quase proibitivas, em certos bares entupidos de bêbados, prostitutas, etc... Mas meu espírito estava ocupado em apreciar a paisagem, mentindo para seu concreto e seus ''verdes''. Estava ofuscado pelo desejo de trepar, e Sabrina me confiava o mesmo desejo, nas mesmas frações, à medida que o carro avançava pela cidade. Um desejo louco, fabricado, chocado através da tarde numa panela de pressão que só um tântrico manipula bem, concentrando-a no seu próprio som, no seu zumbido nalguma parte da cabeça que é todo o Cosmo, com a expectativa de subir com ela até seu apartamento pulsando em mim a cada curva.
Dois peitos cheios dentro do vestido , lançando um bálsamo nas minhas narinas, quando ela abriu a janela do carro: um beijo de carne, um sopro perfumado, enviando uma incrível quantidade de vida à casa carnal dos meus ovos, alguma coisa que ansiava pelo seu corpo se desprendia do meu, percorrendo aquele campo de força que me mantinha preso ao Tao.
Entramos na rua onde ficava o prédio dela, no Itaigara. O ´ceu já estava escuro: à direita, do outro lado da avenida, o coração da cidade resplandecia em gás neon: o contorno neon de um sapato de salto alto gigante, na entrada de um shopping; um vendedor de amendoim, um jardim de girassóis, a haste tbm em neon verde da altura de seis andares de um prédio, para simbolizar a marca de uma cerveja ecológica, o centro amarelo como uma segunda lua, e os refletores que passavam como vagalumes na grama. Sabrina desceu do carro, acendeu um cigarro e perguntou:
---- Não vai subir? , não é o que mais quer? ---
Ria?, nem me lembro. O cheiro de cigarro misturado ao odor das violetas na entrada do prédio, onde morcegos voltejavam no ar sob uma enorme mangueira. entramos no elevador, seguindo aquela força que me mantinha preso aos meus próprios ovos como um abraço. No apartamento, entrei atrás dela sem hesitação. A luz de um abajur na sala ainda estava aceso, enchendo os vidros da sala de reflexos.
---- Vamos até o quarto --- ela disse
O vestíbulo tem uma fila de de cabides sob caixas de metal para guardar cremes de mulher, um cabide de madeira envernizada, um tapete de borracha rosa no chão de mármore, e duas portas: à fria luz fluorescente do prédio vizinho, sinto um arrepio de expectativa percorrendo as pernas dela, e depois a pele dos flancos do seu corpo. Ela estende a mão para o interruptor. Quando o quarto se ilumina, ela já está com aquele estojo espelhado na mão, entornando pó por cima. Assim que ela termina, eu desço seu braço e beijo-a , primeira eletrocução. A princípio, minha boca parece querer esmagá-la, um pequeno manômetro dentro das minhas costelas dobra e redobra minha necessidade de pressão, sem qualquer amor, o amor apenas nos olha de longe e desliza por nossa pele. Nenhuma consciência de sua água no coração. É sua pele, seu corpo que quero esmagar com o meu. Por natureza, num beijo assim, ela se mantém manipulável, assumindo a forma que eu der a ela; a pequena almofada úmida de carne dos lábios com disposição displicente; as janelas fechadas, o ar espesso, o quarto é uma estufa de brotos e narinas latejantes, uma maré borbulhante de sêmen sendo aquecido num crisol de ovos. Avançamos numa espécie de delito continuado, na direção da cama de casal, sua calcinha arriada nos meus dedos, naquela parte da libido onde ela é de fato uma rainha. Nem mais uma palavra sequer. O rosto de Sabrina algo surpreso, naquela pose, rainha de sua própria febre e da minha. A atmosfera do quarto treme por um instante, ao se alcançar a nudez. A curva dos ossos das minha mãos, os lábios vermelhos dela, suas compridas pernas, eram parte daquela febre, vindo dela e se duplicando em mim, enquanto um novo sopro de ousadia, como se a ousadia fosse agora parte do meu ser, me fazia beijar-lhe as mãos afobadamente, tirando disso uma úmida sabedoria de etiquetas. Ela soltou alguns sons anasalados, disposta a recuar uns segundos e de novo na iminência de ceder, o brilho de lua endoidecida nos seus olhos, alguma coisa cara que roubara à sua mente com aqueles beijos que despejei em sua barriga. Uma antecipação do resto do meu corpo, alguma coisa quente e vil, ansiando por justapor-se aos nossos rostos e mentes. A estrada baixa de sua barriga, sob os seios, abrigando também um de seus punhos, enquanto sua boca se oferecia para descer, sempre um lição.
De costas, de um hora para outra. Então, como uma prisão, um cheiro fino e constipado, que falava de pedras, graxas e umidade de pedras num estreito regato, veio saindo dela. Havia algo de embriagante no âmbito limitado daquele cheiro, tão obstinado nas minhas narinas, tão particular, um cheiro que na minha imaginação só poderia ser amenizado por um colar de diamantes ou um casaco de peles, um cheiro que era dinheiro e esgoto ao mesmo tempo, em busca do cheiro de ''foie gras '' nas bandejas da suíte tive então o desejo sujo de deixar o mar paradisíaco entre suas pernas, e minerar um pouco a terra seca do outro local. Pontada dura do desejo de sodomia; uma espécie de maldição física comprimida no espaço de suas nádegas. Já tinha, inclusive, alguns centímetros ali dentro, uma especificação do mais duro do mundo dos pobres, um reconhecimento urbano de que somos algum tipo de bicho, detestável, aumentou o ímpeto do meu calor. Entrei ainda um pouco mais. Decisão monomaníaca, da ambição da carne não de todo limpa.
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