Só não entregam comida: globos de éter envenenado deslizam pelo meu corpo, ao lembrar de Sabrina ali comigo, empinando na cama e ouvindo Stones na porta do quarto 22, surpreendentemente comprido e idoso de gosto musical: o tapete vermelho, as luzes astrais, os mantras brancos como num hall, dando ao cinema do ambiente um ar de imaterialidade hindu. O banheiro na extremidade do quarto, as paredes azul marinho, com quadros falsos e televisão de plasma. --- Ah, até que é interessante --- Sabrina diz --- Quero tomar um banho --- aí vai começar tudo de novo, tirado sangue, fiz bem em escolher Sabrina para concluir, com seu senso de humor ácido constantemente renovado, fresco, enquanto volto do banheiro nu, segurando as roupas na minha frente e deito na cama, nervos afundando na carne, veios com licença de prazo pra me descansar, na divisa baiana do Logos bombardeamento de estímulos como partículas indefiníveis tentando conversar alguma coisa telepaticamente. ---- Quem voce acha que é, K? Um ser celestial? --- pergunta ela ---- EU SOU um -- escorrego pra baixo, a sensação de seios rente aos lábios narcotiza, vermelha por trás das pálpebras. Presença acima daqueles lençóis? Desço um pouco mais, gelatina que conforta, mudando de posição para se esconder melhor, meu ectoplasma gozava sempre, na vazante farfalhada dos lençóis, lentamente girando ela de costas, incerto no espaço interno de suas coxas, uma tinta muito viva de perturbação orgásmica no rosto; ruído suave se deslocando pela espinha, como corrente elétrica. Um homem enfim vazio e de bom gosto, nadando em seus significados em expectativa, uma poeira luminosa boiando no ar, apreensivo brilho. O espaço em que estamos, o quarto do motel, comprido e secreto, transforma-se num espaço interior. Deslizo mais para baixo , sob o lençol, e encaixo meu EU SOU veiudo na fenda curva entre as aconchegantes nádegas, pela curva também tão conhecida da cintura, das costelas à anca. Curva interior de carne agora, ali onde não há mais ossos. ---- Ah, escrever, há uma coisa que os suecos chamam de ''mardrommen'', imagens recolhidas em sonhos ligadas por tiaras de diamantes, numa arquitetura barroca cheia de logarítmos cabalísticos, Mezuzahs e moinhos de orações, frases portentosas e --- todos os gráficos obscenos ali encontram seus respectivos súcubos. Imparcialidade nunca mais, meus livros são todos sonâmbulos perigosos, magnéticos, voce sabe o que quero dizer, milhões e milhões de pequenos impulsos de meditação por dia, formando uma nuvem de palavras indormitáveis no intra-day reagente da imagem do mundo . Esse pogrom divino é o alimento do meu espírito, além das drogas. --- Ela ria. A cavidade úmida que encontrava nas minhas costas suadas, unia em seu espírito a vontade de rir às sombras rasas do trecho de pele que descia dos ossos dos meus membros, como asas. Um cigarro acende-se e ela bebe dali uma pura visão de mim. Seu rosto, ainda molhado de suor, é extremamente belo, e seu riso parece dividido em fatias de significados, obscuros, remotos, os lábios já livres da maior parte do batom. ---- Como voce é boba, Sabrina. Vamos embora --- caninos pontiagudos pelas ruas à noite, de farol alto. Como resposta imediata às minhas preces, aquilo é alarmante. Durante muito tempo , ai, arre, quantas boates fora de ordem, anjos da guarda do meio fio e maldades no recebido e no dado, ao vivo e pelo celular, e também coisas medonhas demais para serem contadas. Cada idéia ali me marcava forte, vinda dos assuntos das pessoas na fila, com copos de bebidas na mão. Na volta daquela aventura, uma maior dose de Demo dentro dela. Bom, eu ia falando ao volante, quando, de repente, os coqueiros saltaram como fogo numa curva fechada, e um carro prateado veio ao meu encontro, surgido do nada. Cinco e meia da manhã. Escorreguei para o acostamento e, sem rosto como a própria morte, o carro passou por mim triplicando a velocidade --- o rastro poeirento insultuoso do patife. Les oreilles ennemies vous écountent --- e, quando Sabrina volta, seus grifos no meu texto são uma sociopatia só. Carro no acostamento, com freio de mão puxado -- nomes compridos, setas de cidades pequenas, quadrados indicando nao sei que, cones alaranjados e círculos de vento e nuvens imóveis no céu --- é como ser vítima de um vírus, a pessoa que cede apresenta um solo fértil para o sociopata, esses egocêntricos sem sentido de responsabilidade, impulsivos manipuladores mitomaníacos incapazes de relações duradouras, sem sintomas de culpa por nada como característica ativa, por assim dizer, invariavelmente excelente ator, mago de narinas serenas, passam a impressão, numa lentidão monstruosa, de estarem no controle de todas as coisas. E que fluxo verbal impressionante! Quantos nao se cegam com aquilo! Na moldura, meus personagens se assombram comigo, é preciso saber antes o que acontece, para depois medir num quadro. Tantas características combinadas, e com boa parte dizendo que SIM com piscadelas de olhos para a leitora, nos turva ainda mais a confusão do livro. Ouço um relógio bater em minha cabeça, como no conto da insônia de Graciliano Ramos. Através da paisagem de coqueiros, concentro-me de novo no Filme Sabrina que enevoa meus olhos, seu nome se dissolvendo e voltando a aparecer, todas aquelas linhas vermelhas e azuis de reflexos do sol no asfalto como uma rede em que minha mente ficou emaranhada em algum ponto. Respiro fundo. Voltamos para o carro, seguimos viagem. Tenho que acelerar agora mas a viagem torna-se mais fácil , nos sovaca a mente com a barreira da fatiga e do tédio profundo, na aflição de ter ido parar num mundo paralelo onde nada conhecido importa. Mais fácil, ainda assim. Entre uma e outra respiração, o desejo de felicidade deixado em estado puro, Stimmung da apresentação do tédio, Strukturmomente que define o ser-deixado-vazio, espirrando os mosquitos de sua realidade dentro dos fatos e notícias do mundo, facilitador de transtornos, cuja pele parece pensar por ele, já entrando em Salvador. Posso sentir a barra girando rigidamente, as engrenagens do diferencial se separando e os mancais rodando nos seus túneis selados de graxa. Os vidros das lojas de conveniência, nos postos de gasolina, neons nas prateleiras, chips me fazendo lembrar de Sabrina jovem, anônima garota em capas de revistas, filas inteiras delas ondulando seus corpos de biquini ao sol, através de grandes festas de verão , patrocinadas por grandes marcas de cerveja e empresários do show-business. Que medo, que raiva pensar nisso numa hora daquelas. A luz do dia era uma péssima idéia brilhando mais forte que as outras na minha cabeça. Imóvel dentro do carro, olhando ríspido sobre a direção, através do pára-brisas, para o céu do sábado. O céu exibia uma nítida qualidade de sábado, mas ofuscada, uma fuligem através da qual minha alma respirava, vinha retornar cada um de meus telefonemas justo naquele momento. --- Pediram para ligar de novo. E, para casa, calmantes e cigarros --- Onde voce mora, afinal? ---- Com Beatriz, a casa dela é um gueto de Carmen --- o sussurro da cidade desperta é também o marulho hipnótico do mar, da cidade velha, ansiosa e enjoada pensando no que de fato Sabrina... os pais dela devem estar a caminho da cidade, assim ela volta a ser ovelha-família com grana. Será? Talvez nem a polícia saiba onde ela enfia tanta cocaína, penso vagamente, e sinto a manhã tonada que deixei para trás como uma rede de telefonemas e corridas opressoras, rastros de desconfiança e fieiras de palavras obscuras, espiritualizadas na linha branca de preocupação, cosida depois através do asfalto, em postas de pensamento, até alcançar a dimensão de uma rede invisível pairando sobre as ruas planas em cujo centro estou retido dentro da minha própria cabeça, com meu sorriso apreensivo de mar aberto. Nada é uma jaula frente a essa incalculável dificuldade, a de jamais saber o que é verdade ou mentira em relação a uma mulher, a uma gênese, a uma genealogia ou a um gênero, e a descontinuidade do inteiramente outro, a literatura revela-se à leitura derridiana território de todas as contaminações e de todas as indecisões. Sua potência própria, afiança o autor de Genèses et généalogies..., consiste em "[...] retirar ou denegar o poder e o direito de decidir, de optar entre realidade e ficção, testemunho e invenção, concretude e imaginação, imaginação do acontecimento e acontecimento da imaginação" (DERRIDA). O que se passa, como o que acontece, um toque, uma transição, um passo concreto rumo à...na dialética macabra da incerteza, seus pontos de inflexão em que mentiras levam à verdades e a verdade provoca o tremeluzir das mentiras. Lautreámont, Baudelaire, álcool, prostituição e overdose m quartos de hotel cinco estrelas, como nos noticiários esses resíduos da indústria cultural de vez em quando mortos num inóspito salar de conforto do qual se encheram. ---- Porque sempre que te vejo voce está sozinho K? --- ela pergunta. Olho para meus pés --- Provavelmente, tbm falando sozinho. Não desejaria completar? --- simulo indiferença, cansaço , enquanto um novo instante em câmera lenta desfoca meus olhos e vejo crateras lunares entre os azulejos do piso do shopping, ao lado dos meus tênis. ---- Não te vejo desde o dia em que Beatriz... --- avermelhada --- Deve estar de gozação , Sabrina. --- paciencia refinada no comando --- É só lembrar direito --- ela diz, puxando a pele fina e ranca abaixo do olho com o dedo indicador, seu seio quente e sanguíneo latejando, façanha de saliva efervescente, o beijo declina do resto de toda cena --- deserto instalado no ser-deixado-vazio resgatado pelo cosmo? Nos confins, exalando-se do Não-Ser . Assim que floreou-se, ahã, toda aquela solidão fraca e sem afeições onde existiam apenas moitas de creosoto, envenenando friezas vistas em rostos de mulher. ''O Diabo, é às brutas. Mas Deus é traiçoeiro!''. ---- Confesso-me surpresa --- Sabrina disse --- chamar de puta nem pensar, e tabefe na cara é cana na hora. A incredulidade que essa imagem me causa! --- chuviscos de falsa indignação rompiam da carapaça vampírica, naquele momento de carnes macias e costelas sedosas. Meus olhos brilhavam, um vampiro também, esperando que o dia passasse logo, num esforço espasmódico de promiscuidade lunar. Ereto, com musculatura de certeza e vontade de corresponder. Sua sombra: peitinhos endurecidos estremecendo no V do rasgão, pensando ELE TÁ MUITO DOIDO! Mas vai ver até que ela gostou da idéia em execução. Havia sempre em mim uma estranha sensibilidade paras as felicidades falsas que toda hora ela queria transformar em festa, ''na lei do mansinho'', se divertindo, se economizando. ''Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir''.
Matheus Dulci, KM
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