terça-feira, 20 de agosto de 2019

VÓS YA SABÉS QUIEN, E CUANTOS DEUTSCHMARKS



---- Seja qual for  seu jogo, andou jogando-o perto demais da própria pele --- Sabrina disse , e Beatriz completou: --- E sua saúde mental?, é difícil acreditar que aquele rapazinho que escrevia tenha passado por tudo aquilo incólume, ou com a pior frieza, a paródia, como se não fosse com voce  --- Beatriz escorregava, dramatizava inadvertidamente, em  busca de algum quadro clínico no cenário da minha memória, e talvez isso tenha estado lá subterraneamente em algum momento perdido do tempo. Talvez, eu pensava, naquele quarto dos fundos, seis anos atrás: uma tela sobre um cavalete pintada pela metade e eu observando a válvula da concha de uma lesma ao microscópio (Zeiss, 2 mil Deutschmarks, imersaão à óleo, binocular). Cavalete e material de pintura à mão. Cavale feérico! Via uma galáxia espiralada de pequenas células córneas cuja pigmentação tinha a cor laranja-escura de um sol poente. Focalizando o centro da válvula do caramujo, passei horas seguidas imaginando quais ondas de emoção, que ressonâncias do campo morfogenético haviam soprado em seu vermelho aquelas lembranças involuntarias --- estava usando drogas, na ocasião, ''proustianamente'', claro --- e, posteriormente, oferecendo meus olhos esgazeados a contemplação das volutas de almofadas do meu polegar e das pontas dos meus outros dedos, encontrei novamente aquela espiral de sonho que estava procurando para encher o resto do meu quarto, e senti aquele calafrio tão comum a alquimistas medievais, nagualistas, hermetistas, quanto aos pirados, aos viciados em drogas, e conhecido de pouquíssima gente que lê: aquele estranhamento acuado de sentir-se à beira de segredos da mente que nenhum outro penetrou. ''O Adepto deve permanecer firme , enquanto tudo o mais soçobra a sua volta''. ---- Como todo homem  de ambição napoleônica, e talentos tão diversificados quanto os dos homens do Renascimento, sempre tive o instinto agudo para detectar momentos de crise em mim e no mundo, e descobrir dentro do paroxismos as novas belezas da auto-expressão. Krisis era iniciação, encruzilhada nunca tão próxima do precipício. Auto-contido como se, nos mais artificiosos circuitos mentais, meu cérebro já estivesse recobrando sua força genital primitiva, tântrica, para transmutar-se em fantasma depois.

Ela entendeu depressa demais tudo aquilo. Embora meu nome já houvesse sido esquecido, e a grande idéia da pirâmide tivesse se dissolvido entre as páginas mofadas do meu panfleto, comigo ainda restavam tres ou quatro exemplares daquele extraordinário documento. Citarei livremente alguns trechos dessas TRANSDUÇÕES em seguida, as quais, devo acrescentar, só foram realizadas ainda em parte, em forma de poemas, onde me esforcei para fixar neles um CENTRO, pose auto-poiética indefectível, criticada por muitos, por perdulária ou snob, mas calma e estável sob seu próprio campo de decisões. O poeta devindo um ''em-casa'' com a Cabeça da Noite: Beatriz. Desde o ''tornar-se criança ''(Cristo), ou o ''parir- na Mãe-Sabedoria'', de Monfort, aos auto-partos instantâneos (Meister Eckart) e na inocência animal (Rumi) e na desesperação (Kierkgaard), mais o luciférico ''portar'' da Luz ou colar de descrédito, para ''ver diretamente'' passa --- a parir-nos no conhecimento do nascimento de cada instante, assumindo e superando a desesperação em jogo, seu crisol ---

 Chocante! , eu disse, Quem com maior e genialidade e intensidade paradigmática realizou toda essa síntese foi Artaud, chegando ao cúmulo de negar seu nascimento. E que a Loucura surge com o nascimento. ''Eu não nasci ainda e isso é tão certo quanto um bife com batatas fritas''. Não tendo Artaud se valido um só instante de nenhum dos féretros das comodidades dos sistemas pré-existentes, na total indigência fundadora da decisão, o orvalhar originário da linguagem, esgrimindo uma verdadeira cena entre os entendimentos e sobriedades excessivamente ponderados por seus contemporâneos, incluindo filosofias, tradições e vanguardas. Religiões, universidades e imprensa, poemas-laudo que a Gallimard divulgava, provando que é na própria carne que o que os homens chamam mistérios se cumpre, de maneira totalmente profana, como em Heráclito de Éfeso: partindo de uma imprescindível  exigência de autenticidade e interioridade. Por esta exigência de interioridade máxima, autêntica, oposta tanto às  práticas exteriores do culto popular quanto dos ritos mistéricos, Heráclito havia rechaçado a função que lhe queriam fazer cumprir numa comédia de pseudo-iniciação, e havia aumentado sua exigência desmascaradora a ponto de um psico-drama do Ensinamento. E na nova missão que assumiu se deparou com uma espécie de inevitável tragédia: a impossibilidade de se comunicar com os ''sem ouvido'', incapazes do '' orvalhar originário do Ser, na Linguagem'' , seja, incapazes de comunhão, que inclusive ouvindo o Logos seguem sendo surdos como antes.

No momento, meu olhar era tão frio e vazio que eu poderia ser facilmente qualquer outra coisa, no hipocampo daquela abstração, da casa da pousada à beira mar onde ocorre o final dessa história, como um filme (que ressonâncias encerrariam as vigas e cortes de frisas, os puntos de encaje, as tábuas arqueadas do chão de uma velha casa diante do mar)... poderia ser também apenas um daqueles coqueiros, havia um coqueiro (um dendenzeiro, mais precisamente) ali, com um bordo excepcional cujo tronco se dividia em quatro a apenas alguns palmos do chão, e cujos ramos e raízes estuporados, nos meses do ano em que as folhas secam e caem, têm as formas nobres dos sulcos nervosos do cérebro vistos nas projeções cirúrgicas das ilustrações daqueles pesados e sinistros manuais de prática médica do século XIX que eu andara lendo... poderia ser até mesmo aquele pequeno jardim atrás da casa, que quase ninguém vê --- estamos todos perto do mar por aqui, certo? ---- as flores ,naquele verão, tinham a vivacidade elétrica proporcionada pelo ar salgado, o solo arenoso e o adubo superenriquecido com néctar artificial e hidromel... digo isso porque Beatriz me fez pensar também sobre aquele jardim, de considerá-lo,para efeitos afetivos da paisagem, evocando ''antigamentes'''. 

Dormentes, mas mal chegamos a nos conhecer mais do a que ''aquilo''. A palavra rareia, retorna ainda mais búdica do que saiu, quando ser barulho a exauriu e alienou -- palavra primordial, cedo apreciada retorna da inexistência para a precisa-harmonia, identificação jívica ignorada? Aguardamos a viagem , sem Oriente nem Ocidente, no DE FORA, nas novas línguas, no ''em -casa'' em ''lugar nenhum''' da Linguagem, no ser-aí, nova criação, e terrível que tenha sido assim, da forma mais escarpada, pois cedo chegou a constituir em minha vida um problema de proporções consideráveis. 

---- Muita pretensão da minha parte? 

---- Foda-se.

Quem sabe aquela tarde escaldante na janela, no ar condicionado, não era realmente o dia em que a primeira das células explodidas daria aquele misterioso salto originário  independente de uma vida para outra forma de vida: aquele salto que vislumbrei várias vezes ao longo da vida, em outras pessoas ou em personagens de conto, que eram eu ou outros, ou outros eus de outros. E até mesmo experimentei um tal salto em mim mesmo, Ursprung originário em Heidegger e rapto da forma narrativa da história em Benjamin, cautelosamente meditativo acercando-me da Luz, da sabedoria serena do cuidado, da vida diária de uma célula obediente, mas cuja vida social, para quem o Ser deu as costas, adoece dos propósitos de qualquer decisão, pobre e indizivelmente morfética. Salto dessa para aquela outra célula, selvagem, errática, a vida da erva daninha ou do pistoleiro de aluguel, célula pirata crescendo segundo suas próprias leis, rizoma assaltante dos sentidos, dos discursos, relações, imagens, nomes , toda uma maquinaria de escritura sitiando os orgãos do mundo, rica de velocidade orgíaca, seu exemplo constituindo uma atração para outros milhões de células, pois se a outra vida é curta, é também livre e sem complicações inúteis. Por outro lado, pode-se dize-lo também miraculoso de formas e linhas, e aqui o Poeta torna-se realista de uma maneira inimaginável, e através de seu mediadou (e simulador) ''pincel'', interroga a paisagem.

Mente, ou nem sequer estaria interessado em ''escreve-las''. Sua impaciência decresce ao longo de uma hora ininterrupta de leitura saltada orvalhada (originária)  através do sangue com a mente com um cheiro de sal sob as pálpebras dela, uma pressão úmida de insônia lisérgica apertando seus olhos, a maciez de Sabrina na cama, nos cantos do meu espírito. Estou numa poltrona da sala, debaixo de um abajur, mas vejo suas mãos, sua respiração, o estalar das molas na cama, quando ela se vira (se mexe muito dormindo) e a dor da raiz ressecada da minha língua, tudo na minha mente registra suas cores invisíveis, inorgânicas.  Por horas, Sabrina é um longo ventre esticado em luz acima da linha de sombra do abajur. Sim, um novo dia estava nascendo, podia sentir a manhã chegar nos meus olhos enquanto jornais eram despejados por motoboys e zeladores iam e vinham lá embaixo, entre carros caros. De longe, observo uma das cintilantes reproduções de Dufresne (déjeuner inteme do século XVIII: um belo e carnudo nu de mulher: sólido, vibrante, róseo como uma unha, com fulgurantes ondas de carne: que canta, como o corpo de Sabrina, que tem a umidade da madrugada. Todos aqueles peixes coloridos do Atlântico sob nós, saltando sobre a orla do edifício-penhasco, encravado na rocha do mar.

Portas emergiam das profundezas subáqueas do meu ser, ou fugiam de um banho através do vidro do box, interrogando a chave de todas aquelas superfluidades erigidas em símbolos, s quais agora era preciso ter, para uma circulação mais proveitosa pelo mundo dos vivos --- o mercado assinava aquela planta. Clarificação de inquiridor e inquirido, todos os nossos advogados no rastro retórico do Homem-Prometeu rejeitado, ''controverso'', hábil na abolição do tempo, apocalíptico ou integrado, rápido transitar por Apocalipses entreabertos no cotidiano da contemplação das idéias, enquanto número e ritmo da realidade. Reduzindo tudo a simples fatos de crônicas, as cores invisíveis das frases espantavam a leitura desavisada, tornando-a inorgânica, controlada de fora, abduzindo e moldando em super-moldes os palimpsestos holográficos por cash --- todos os preços discutidos a olho nu na rua, e se o espaço mental assumia agora a forma de monólogo , era como forma de escavar e duvidar das próprias palavras, e, nelas, certas realidades de protagonismo que nos escapavam em favor de dublês padronizados mantidos crus em suas valises. 

----Tal o irresistível impulso nos meus Livros, maior que o do sucesso ---- disse eu

Quando o assunto sucesso foi abordado, Sabrina empenhou -se em arancar-me uma formulação mais explícita para meu fenomenal ''sucesso''.  A guisa de resposta, reverente, disse apenas:

---- Fe dois tout  à celles-ci '', embora isso nao seja exatamente  uma resposta.

Meu gesto revelou em mim uma fala humilde e desapegada, despersonalizando, diante dela, o homem que escrevia e pensava que eu era. Súbito, tornara-me pura hecceidade zen no hipocampo prânico da cidade, transfixado por um vento vazio de qualquer imagem ou pensamento.

----- Todos seus livros constituem enigmas de interrogações, suspeitas, desconfianças, rastreamentos e conflitos de versões, cripto-débacles financistas, impasses dinamarqueses da língua. ''O desacordo profundo'' voce escreveu ''mas dançado sobre a corda''. Pensamento sinuoso que não concede facilmente, ou mesmo proposta-pensamento sistemática, de interrogações que despontam (mutatis mutandi) em certas formas de poesia, de narrativa ou de tradução --- TRANSDUÇÕES que, por VIA MÁGICA, se transferem  às pistas enmerdecidas da economia, da política e da cultura --- como bichos numa caçada do Logos: arquimago de encomendas vetoriais, resultados taumatúrgicos, ondas de números e epistemes ---- ESFINGE PARIDA! --- jeito e voz de barítono empregado na maiêutica.

MATHEUS DULCI KM

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