''No afã de um recorte de suficiente nitidez entre a segurança de toda filiação contínua a uma gênese, a uma genealogia ou a um gênero, e a descontinuidade do inteiramente outro, a literatura revela-se à leitura derridiana território de todas as contaminações e de todas as indecisões. Sua potência própria, afiança o autor de Genèses et généalogies..., consiste em "[...] retirar ou denegar o poder e o direito de decidir, de optar entre realidade e ficção, testemunho e invenção, concretude e imaginação, imaginação do acontecimento e acontecimento da imaginação" (DERRIDA, 2005, p. 50). Oni-potência-outra, isto é, capacidade de indistinção, a literatura incita à apreensão "não-genérica e não-genealógica" do outro como o que se passa, como o que acontece.
A literatura atrai Derrida em razão da evidência de seu "estatuto jurídico precário", isto é, de sua irredutibilidade a uma intencionalidade específica inscrita junto ao corpo social. O que em grande parte explica o direito incondicional da "literaridade" de tudo dizer: "[...] a mais selvagem das autonomias, a desobediência mesma", em toda inocência (DERRIDA, 1998, p. 29-30). Ora, se a literatura joga inocentemente em perverter distinções – com que se compraz uma leitura desconstrutora ocupada em desrecalcar as escolhas feitas junto a sistemas dicotômicos –, Derrida retira particular proveito reflexivo do fato de a narrativa blanchotiana – sobretudo L'instant de ma mort, analisado exaustivamente em Demeure – dispor sobre um "limite indecidível" a partilha entre ficção e testemunho.
Esse limite é uma chance e uma ameaça, o recurso a um tempo do testemunho e da ficção literária, do direito e do não-direito, da verdade e da não-verdade, da veracidade e da mentira, da fidelidade e do perjúrio. (DERRIDA, 1998, p. 31) .
Vê-se, assim, a leitura do filósofo engajar uma reflexão sobre o direito da literatura de dispor (e de decidir acerca) das "virtualidades espectrais" e, por conseguinte, das mentiras, perjúrios e fragmentações do verdadeiro que venham matizar todo testemunho real e responsável dos acontecimentos. Com o que estimar o valor argumentativo de um rebatimento da presumida "irresponsabilidade" da ficção sobre uma "justa referência à verdade"4.
Por sua forma, a literatura é estruturada de modo a "[...] guardar em reserva indecidível aquilo mesmo que ela confessa, mostra, manifesta, exibe, expõe à saciedade" (DERRIDA, 2005, p. 36-37). Ao refletir o testemunho não mais em relação ao conceito de ficção, mas a partir dele, Derrida dá a pensar uma filiação insuspeita, secreta, entre literatura e filosofia, uma partilha da "tentação analógica" – onde sustentar a afirmação e a negação contidas num "ser como". Ao alimentar a impossibilidade de decidir se o que se passou aconteceu na realidade, "[...] se este na realidade é ainda imanente à ficção, tal um tremor da sobrecarga ficcional, um efeito suplementar da ficção" (DERRIDA, 2005, p. 19), a literatura ensina à filosofia a devolver às palavras seu poder de especulação e de imaginação. Importa, pois, considerar os efeitos argumentativos de tal capacidade.''
Uma "possibilidade impossível de dizer": o acontecimento em filosofia e em literatura, segundo Jacques Derridá, Osvaldo Fontes Filho
Manoel de Barros
LIVRO DE PRÉ-COISAS
IDEM
Nenhum comentário:
Postar um comentário