Em suma, eu estava começando a ficar cercado por mallarmezinhas por todos os lados, o que resultava em certa lente desarmada pelo excesso de personagens mulheres tão parecidas umas com as outras, ainda que capazes de propor ainda outras mallarmezinhas, mallarmezinhas de ''rechange', para climatizar aquele fogo'. Em todo caso, restam daquele episódio da TEMPESTADE, por efeito de tangência e paralelismo, versos maravilhosos do próprio Stephane Mallarmé, inseridos na Overture Ancienne d ´Heródiade:
''Ses trompettes d ´argent obscur aux vieux sapins!
''Reviendra-t -il un jour des pays cisalpins!''
Sob a lustrosa extensão preta de seu vestido, o traseiro de Sabrina enche o pano com notável distinção, a cintura elegante encaixada na anca, acenando para as linhas do rosto e o grande decote em V nas suas costas; o cheiro, ou perfume agudo do seus cabelos, se junta ao perfume atrás de suas orelhas; seus brincos são prateados; suas narinas latejam; ela come devagar, pausadamente, e muito pouco mesmo! Há ainda um ou outro esbarrão em mim ou Beatriz, enquanto Carmen toca o interfone. A pele dos ombros dela brilha sob a lâmpada do abajur, no sofá, e logo depois se amortece contra as sombras da mesa. Sinto ela como algo constantemente se mexendo a meu lado, esbarrando-me, alertando-me contra excesso de propósitos e alinhamentos de personalidade.
Carmen acomodou-se na poltrona da sala assim que entrou, como se estivesse fazendo um ninho, e disse:
---- Ensaiando, Sabrina?, em busca ''daquele jeito habitual das mulheres'', como voce disse ontem? Agora, voce é uma pálida pele inerte ao lado de K, aí no sofá, talvez com um pouco de sono, não? Quer um copo dágua? ----
Sabrina faz um gesto de recusa e boceja amplamente, está morrendo de sono. Tira um cigarro e gruda-o nos lábios vermelhos de batom, franze a testa e se levanta do sofá --- acompanho tudo cinematograficamente --- e pára na janela. Carmen faz uma espécie de marcação, como uma pessoa inquirindo outra:
---- Aquela ''habitual'' falta de jeito feminina para acender cigarros.
Olho para Sabrina na janela, a base da narina esquerda levemente emplastada de pó, ela parecia salivar veneno com o olhar perdido no trânsito lá embaixo. De repente, riu e passou o indicador n nariz.
---- Sim, até na maldade consigo mesmo o ser humano é capaz de encontrar sentido de realização --- ela disse --- Na santidade da realização em si, sob a forma de dar o melhor de si para destruir-se, ou coisas piores.
No seu copo, apenas cubos de gelo descendo e chocalhando de encontro aos seus lábios. A câmera lenta de tudo afronta minha tentativa de sair do limbo. O poema vem enquanto ela drena o resto do Daiquiri, com o queixo meio esverdeado da luz verde do líquido:
MAU-OLHADO PÚDICO
''Il s’agit de moi,
Vertement s’explique''
(Rimbaud)
Sou eu, ¿lembra de mim?
despacha-me então, alegre.
depois, na sala de espera
desconverso sobre jaulas com ela
e penso em venenos de boj
e baboseiras ao sol, em silêncio:
não posso com tanta coisa
sem comércio nem espaço:
mudas, plenas de drama e
comédias de ''te amo'',
tudo num giro de cenas
de múltiplos nadas públicos,
apenas linfa e flora.
Si gai, si facile :
Ce n’est qu’onde, flore,
é apenas linfa e flora,
et... Il s’agit de moi,
vertement s’explique
múltiplos nadas públicos!,
Atacando minha voz
com uma mau-olhado púdico.
---- Comida chinesa , Beatriz disse.
Uma deliciosa saliva echeu minha boca. Eu acreditava mesmo que tais mallarmezinhas nem sequer sabiam tão bem o frances, mas armadas naquela voltagem, Helás, era como se os súcubus lançassem os dados de novo, transformando o ACASO em novas profundezas de atração, regidas pela mística sincronicidade das terra-de-ninguém, das sugestões dos sonhos e certezas telepáticas, demoníacas, sobre poderes e risos falsos na sombra, ganhando ritmo de musculatura teatral em ação.
---- Bem sei que O Imperador Júlio César nao figura no poema de Mallarmé. Contudo, a palavra ''cisalpino'' impeliu-me a distorcer a história de novo. O Anômalo, o ser esquivo, A Coisa, mais uma vez ri-se, xamanicamente, de seu ''desvio pedagógico de ap´resentação.
Relação abstrata com detalhes de cenas.
BOM PENSAMENTO MATINAL,
Rimbaud (tradução minha da terceira estrofe)
BOM PENSAMENTO MATINAL
Bonne pensée du matin
Arthur Rimbaud
(tradução minha da terceira estrofe)
Dans leur désert de mousse, tranquilles,
Ils préparent les lambris précieux
Où la richesse de la ville
Rira sous de faux cieux.
Em deserto de musgo postados,
tranquilos, preparam lambris preciosos
sob os quais a riqueza
rirá, como sob falsos céus.
Comemos bem. Nossos rostos ganharam calor e força dos pratos cobertos com molho agridoce. Enquanto comíamos, um silencio carregado de larvas de palavras e pigarros encheu-se como nuvem, sobre nossas cabeças. Insinuações telepáticas mudas, mas preparadas para a qualquer momento...
Olham-me ambiguamente, esperando ''preços'' e ''adjetivos'', títulos de livros, traduções livres, deboche e certo medo de dizer a VERDADE (orgulho e algo menos que orgulho, pretensão, movendo os cantos da máscara). Mas há de fato um orgão fundamental naquele laboratório de traições, talvez o único que capte algo real também aos outros.
---- Estranho, sinceramente --- disse Carmen - -- e para meu espanto, foi quase tudo o que ela disse. --- Sinceramente, não fazia idéia de que eram tantas organizações. Até da Rosa-Cruz ele fazia parte, antes de entrar para o grupo de teatro.
De repente, o telefone tocou. Beatriz o atendeu na sala. A respiração áspera e irregular de Sabrina convidava a mudar de assunto.
---- Tem uma amiga que também é assim --- Sabrina disse --- é uma das minhas dez melhores amigas, durante um mês a cada seis meses. Chegam ao teatro e à televisão com um tipo de narcisismo surpreendente, até começarem a aparecer em entrevistas e jornais. E ainda que falem mal, na maioria dos casos, e se suscetibilizem, revelando em público um vazio existencial cujas cascas são meras alegorias de si mesmos, reinam sobre uma maré de focas de paparazzis e repórteres e suas leituras de roteiros envolvem um bom jogo de orçamentos e contratos. Estou com muito sono, vou dormir.
---- Conversamos sobre isso depois , disse Carmen -- Voce é de fato um cavalheiro , K... Sabrina e Beatriz também o percebem
De repente, Sabrina levanta o copo vazio à altura dos olhos : o copo é uma espécie de taça com pé curto, como uma taça de sorvete numa festa de aniversário. Emite pálidos arcos de reflexos que flutuam pelo rosto dela.
---- Não vou mais lhes importunar por hoje. Boa noite --- diz
Sim, ela se vai. Nós, os remanescentes, tentaremos intentar alguma coisa alternativa, então. Entre nós três, Beatriz é a que tem o jeito mais empenhado de simpatia, distendendo nossas feições enrijecidas pelo contato com Sabrina. Carmen é apenas um novo sorriso irônico, diante disso, mas eu torno-me imediatamente convidativo, dialoguento, assertivo na convicção de que mesmo aquele sorriso de Carmen, diante da aprazível frieza empática de Beatriz, possui múltiplas utilidades, e infinitas tonalidades alcóolicas possíveis, até mesmo com saúde promitente!
Matheus Dulci
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