segunda-feira, 9 de setembro de 2019

BOLETIM DE GUERRA


BOLETIM DE GUERRA

Viver no ácido é o sistema da luz genital dos deuses, ave namorada do primeiro abismo , sem alcova clara, recebida de presente no reino do coração invisível. É, naturalmente, um modo de morrer esfarelando-se, cujo mel inaugura, a cada vez, seus próprios meandros. Pólen incendiário, sêmen de vísceras transportadas na luz astral , tentativa verde ou vermelha, pátria misteriosa do musgo . Uai ! , é o que se diz, se o tempo vai ou fica preso em nós. Reino das raízes com fulgor de menta, púbis molhado do poema, parte da molhada habitação terrestre, poeticamente ---- como se as cascatas do azar, do âmbar, das narinas houvessem transgredido minha substância e eu, desde este momento , lhe levasse embora comigo, oh leitora .

Um som na imaginação insólita que aplasta o servilismo realista. Eu vi na entrada do hotel , entre bois, carrapichos e bicos de ganso ao sol ; no meio da mesa, na tenda, no armazém da estação ; depois, em aeroportos constelados ---- aquela mesma efígie de distanciamento, monumento de pedra e polícia. E assim se passou comigo . O vagido, o pavor das tocaias, o caminho-Matrix, a Dialética do Esclarecimento. Crescimento por decreto? Pouco a pouco fazendo-se tímpano e lucidez, onde o sexo aperta a garganta. Do luminoso mel da palpitação das abelhas, do meio -dia estático à folhagem morna. Era o mesmo soluço esparramado...

Espermatozóides. Sinto que exprimi com força uma agitação tântrica que nada aplacará. Deixei nome, filhos e um casaco de couro novinho oculto naquela porra. E um pote de brilhantina. Todas as reivindicações políticas ---- deixei pátria, família, cheques sem fundo ---- serão pagas ; não são mais que o disfarce sob o qual se dissimula minha porra represada! Deixei nela minha bermuda vermelha, um resto de sabão e uma espécie de angústia que exige incessantemente mudanças e destruições. Deixei máquina de barbear enferrujada, livros abertos em pontos chave e bocas fechadas: deixei rasuras ininteligíveis em leituras embruxadas, e ainda : sapatos de rua e de festa ; caspa, cheiro de pés inertes e conta corrente encerrada. Deixei brigas de família, depois do Kung Fu. E deixei muitos papéis na gaveta destinados ao mundo, antes de ir para o hospício.

Longínquo e tão imperceptível quanto um ponto , perfurando a espessura enevoada da noite, mas sem nunca aparecer senão como a vacilação inapreensível de um raio.

O zumbido da guerra nos suspende muito alto acima de nós mesmos . Nietzsche  não escreveu ''Ich liebe die Unwissenheit um die Zukunft '' ??? Mesmo do hospício, eu o ouvia:

‘’É no alto que devemos enterrar aquilo que fomos’’.

A guerra tendo estourado, tornei-me incapaz de esperar. Exatamente: de esperar uma liberação que este livro é para mim. A desordem é a condição deste livro. É a condição desta guerra. Ela é ilimitada em todos os sentidos. Os ombros me pesam. Voa-me a cabeça. Estou sem apoio de chão e de nuvem. Adoro que meus humores, meus excessos não tenham meta. No entanto, queria chegar, mas sei que não chegarei nunca... Uma vontade mesmo assim prossegue, zombando de minha impaciência. O choro de manhã cedo. A pavana da marquesa. A mina que nem sempre explode. O ouro que nem sempre vem. Tornamo-nos longínquos e indiferentes durante esta guerra. Habituamo-nos rapidamente ao saque puro e simples. Longínquos nas palavras. Indiferentes aos perigos que tanto nos atraem. Para além da agitação, os homens no ouro se enterram. Mas exterior à ambição bruta, mensurável, está o desejo que temos de ir ao extremo de um destino evidente : a MORTE ? --- é algo que não nos perguntamos mais.

Para nenhum soldado da guerra atual é viril viver enfeitiçado. O que fora de si não se exalta, mas aterra, é muito pouco: um punhado de terra ensanguentada. Por alguns dias, a vida alcança a obscuridade vazia dos campos de batalha. E com essas coisas avelhantadas, rima-se o abstrato com o ab-sinto das situações-limite. Resulta daí, invariavelmente, uma maravilhosa descontração : ao espírito se revela o universo à disposição do desejo e dos movimentos corporais, mas a perturbação da guerra logo se instala. A vida passa a ser sentida como uma náusea do estômago ; a existência da própria alma como um incômodo dos músculos. A desolação do espírito, quando agudamente sentida, faz marés , de longe, no corpo, e dói por delegação. Nada se obtém assim acima do humor selvagem. O que fora de nós persiste é apenas o limite que não se fez, o fim que não se pretende ter, mas se tem preso no próprio umbigo. Está-se consciente de si um dia, em que a dor consciente é, como diz o poeta: ''laguidez, mareo y angustioso afán ''.

É difícil. O Logos se constrói na minha retina de marinheiro...

Esta noite senti-me novamente com a ''língua cortada''. Corpo dentro, corpo fora, qual o meu ofício ? Acontece que o estado de guerra até aqui só me trouxe a chance extrema. Esta de absorver os mortos, nossos e alheios. Uma espécie de liberação sem piedade. Da mesma forma que a fortuna chega durante o sono, insuperáveis obstáculos vencidos com facilidade durante um sonho. ''Vi'', ao passo que até aqui só me esforçara. Havia sempre um sentimento de luta. E ainda isto : assumir o espaço entre blocos de percepção demarcados. Mas o sonho caiu na armadilha dos meus desejos tão simplesmente quanto escrevo isto. Uma chance tão enfeitiçada num mundo que se tornou medonho me fez tremer : tremer de alegria ! Reencontrei , perdido de vício, a pureza e a inocência. No mais, me deixei gemer à vontade. Vi que não morrerei sem ter antes saído de todos os meus infernos, e muito menos desta guerra.

Agora há pouco vi os estragos na periferia próxima. As bombas caíram quando eu estava perto da Baixada. Muitos mortos. Eu como um espectro que desliza entre eles. O ar me deixa passar... nas mais graves circunstâncias... ao acaso... os acontecimentos... roendo-me como um rato... falseando seu julgamento... ser roído... contra a realidade... cortante da força... tudo alucinação, sonho ruim... o horror me pegando pela garganta... passando para os equívocos não ditos... e muito além... e pleno sol à beira do pântano... se atingirmos o outro lado (que ficou por mencionar ) a solidão se desfará no ar... mas olha, cuidado... o primeiro ataque não foi como o último, não será como o próximo... mas não estamos mais tão longe de casa, e o anjo da barcarola não tem corpo nem voz. O gosto da vida é pouco para dele se abrir mão. Casa de tolerância. Amendoim. Carvão. Falo de uma onda para outra onda. O fogo destrói o freio do vento. O torto, o aborto, barcos em flor, na lama, ficam mais brancos do que são. É isso. O prisma não conhece a servidão em que mergulho. O homenzinho que sofre à medida que o infortúnio cresce, o homenzinho confuso em meio à legião de homenzinhos aos quais foi prometido o reino dos céus. Asceta, como eu zombava de mim. Pela absurda aceitação de uma convicção eventualmente tocada. Este eu, no táxi, inexistente, mera encarnação da idéia do personagem, símbolo bípede de um puritanismo feito de negativas : não ao álcool, não ao tabaco, um não equivalente ao dinheiro ---- ninguém, na realidade ; um nome, um número, uma diminuta idéia construída mecanicamente em conjunto com o mercado e a psicanálise. Sem graves oposições ou encalhes iniciáticos. Talvez seja isto que estejamos aprendendo com o tempo e, insensivelmente, sem prestar atenção. Talvez os ossos saibam disso.

Falei-lhe lentamente, como se as coisas pudessem melhorar se eu escolhesse bem as palavras , como se já não fosse visível a impaciência na pequena boca arredondada. ---- Só quero falar com você um instante (.) -----, acrescentei . -----Mas se estiver incomodando (.....) ----, então ela sorriu, divertida, levantou uma das mãos e deixou cair, pôs-se de lado para me deixar passar para perto de si. Não sei se estava caçoando ao inclinar , sorridente, a cabeça. ----- Só um instante --- repeti . ---- Mas sente-se (ela disse ) ----- num gesto de boas vindas. ---- Quer beber alguma coisa (?) ----- , na mesa, as mãos escondidas atrás do corpo. Movi a cabeça , fui anotando cada mudança do aposento, lembrei minha primeira visita, o cerco na fisionomia da desordem, da experiência acumulada da batalha. Mas algum elemento desconhecido continuava se impondo através de meus atos, emanando o mesmo clima de alegria sem motivo, de artifício de guerra eficiente ; a sensação de uma vida fora do tempo e resgatável pela literatura.

---- Literatura de guerra? --- ela riu

Levantei-me para encher o copo e me aproximei dela com a garrafa. O novo penteado atenuava a animalidade do meu rosto; meus lábios tentavam intumescer-se ; minhas pálbebras desciam como grossas membranas calosas, como valvas de que se podia prever o golpe seco, anti-intelectual do abismo zen. Bebemos e me abandonei de novo na poltrona , sorrindo às lembranças de nossa juventude . ----- Penso eu em seu ódio às mentiras, o arrebatamento zen ficando bon; em como você se exaspera e sua voz falha quando é preciso salvar o sentido da vida, cavando, convencendo, quebrando as unhas para desenterrar e destruir feito insetos aquelas mentiras ubíquas que agem sem que ninguém as mencione, e que o exegeta Bon grifa e embruxa -----, eu disse. Ela se contraiu, de pé no quarto ----- Por que não me deixa explicar ? O que voce quer saber ? EStá vendo???? Não me deixa falar. Você pensou que eu tinha gostado do que aconteceu aquela noite? , que eu podia fazer o que quisesse com você, porque seus livros não vendiam tanto? Voce veio com uma mentira e eu fiquei ouvindo, só isso.  Parecia um homem distinto, meio louco, enquanto acusava arte mercenária da indústria de conter seus poemas no limbo, para que não recomeçassem  o tempo do mundo, pensei no começo de tudo, em como voce se livrava bem dos questionamentos dos outros, no meio de tanta gente falando ao tempo sua voz parecia uma mística poética forte e perigosa. Entenda: eu estava gostando de ouvir voce aquela noite e perdi a noção das horas, a culpa é sua (.) no fim, tão neutralizável quanto o ‘’Pobre Antonin Artaud’’ --- tia demente mor de nossa abjeta erudição de hospício e guerra.

Toda noite, uma estrela no mesmo ponto do céu. A absurdez do eu das pulgas ou das moscas se desconjunta na absurdez da beleza da estrela. Nada mais que uma estrela ---- - simplesmente estrela. A matéria ''é'' , na medida em que dissolve um homem ou põe a nu seus dispositivos e agenciamentos. O eu opaco mantém o eu na opacidade. Pensem na monstruosidade dos eu s do inferno e do paraíso, pensem no Deus do Eu, que ordenou sua multiplicidade delirante. Naquelas alturas, eu já aceitara o que me esperava escondido na gaveta. Não conseguia me desinteressar de meus personagens. Mil vezes teria pago o preço para abandonar-me, sem interrupção, ao feitiço, para poder vê-las ir e vir, para abandonar-me à atenção absorta com que seguia seus movimentos exóticos, as situações que se repetiam e se modificavam sem motivo. Girando sobre uma tarde, um desejo, um desânimo, diversas vezes ; para poder transformar minhas andanças em turbilhão, compadecer-me, inteirar-me, deixar-me querer , fluir numa zona de luz suave, que nos continha. Eu brincava de medir meu suor examinando a superfície embaçada do copo ---- Note que as histórias de fantasmas são todas iguais, uma única história ---- comecei a dizer ---- Costumamos conta-las como se fossem diferentes, como se já não tivéssemos ouvido dez vezes a mesma coisa. Veja a importância que damos aos detalhes!


Matheus Dulci,KM

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