''De
forma alguma (eu disse à Gisele) não se
trata de afetação ou perversidade da minha parte. Apenas um pretexto útil . Sou
do tipo que nunca se esquece de si mesmo. Quando me olho no espelho, olho para
me ver olhando-me, é minha própria consciência o que eu contemplo. As coisas só
me aparecem através dela, por meio de uma translucidez às vezes viscosa, adorante demais, como um
tremor de ar quente no verão. Na causa nobre em que minha consciência luta
agora, o ineditismo de certas cenas revela a inexperiência dos atores
adversários. Hume, possivelmente, não teria conseguido acompanhar isso com
curiosidade E quem depois de Lolme ainda anima-se a escrever com elegância
sobre repúblicas régias ? Opitimatium populique. Ainda assim, tenho um programa
único. Não me afastarei dele, na medida em que não tenho opção. Agora diga-me !
Bem, eu fui provocado, não fique com medo. A mente humana é estranha.
Objetivamente, essas forças estranhas pouco me afetam, mas me despertam um
desejo absurdo de ação que estabeleça conexão com outras ações , de coerência,
de formas, de forças, de mistérios e de fábulas . Pode ser que ainda pense não
ter outra opção, mas ,pelo visto, estou surpreendentemente enganado. E não
gosto disso, parece pouco verossímil. Não faz mal. Porque os poderes teriam
mudado em relação à mim ? Positivamente não gosto disso. Essas forças , em
última análise, não são estranhas a quem leu o Paraíso Perdido, de Milton, mas
muita gente ali não é versada nos clássicos.
Portanto, é melhor adotar explicações mais simples, com gráficos
coloridos e linguagem de surdo-mudo, mesmo que não expliquem grande coisa. Por
exemplo: que os chineses trocaram o uísque Chivas e a vodka Absolut pelo
conhaque barato, nos bares e casas noturnas. Pensar que medidas restritivas do
Governo Chinês estão mergulhando o ideograma alcóolico da população numa nuvem
de ressaca. Não é necessária uma grande clareza aqui, apenas uma luz fraca,
fiel, que nos permita viver e nos regojizar na estranheza, encontrando em cada
realidade uma insatisfação fixada, um apelo à outra coisa, mesmo que seja uma
bebida. Não posso falar em nome de todos os consumidores do mundo, mas como
demônio sou obrigado à me devotar à boa escrita. Como numa imensa colméia, as
zonas de livre-comércio do mundo são sacudidas por zunidos de sexo pago e mão
de obra barata, enquanto alguns poucos rostos enrugados permanecem mergulhados
nos negócios, ou relaxando em algum piano bar das alturas. Rostos eternamente congelados
em sorrisos condescendentes e fingidos, apurando o ouvido em horas diversas do
dia para garantir o valor dos seus estoques de riqueza parasitária. Ações de
estabilização ampliando os critérios de avaliação nas decisões dos gastos de
suas empresas. Quantitative Easing disfarçados de longos e pacíficos
desenvolvimentos filosóficos onde até mesmo palavras como ''filantropia''
aparecem. Que pérolas de cultura ! Prreezisa de Lebensraum ou offshoring ? O P.
de L. (espaço vital) é um elemento de geopolítica alemã do século XIX,
apropriado depois pelo Nazismo. Pregava, assim como a Globalização, a
necessidade de expandir o espaço geográfico alemão para estimular o crescimento
da população germânica. Hitler sempre citava a doutrina do Lebensraum para justificar
suas invasões internacionais. Por mais impreciso que eu seja nos meus detalhes,
sinto que apresento uma demonstração pioneira, desta vez. Uma ''DISCUSSÃO
PEGUILHENTA ''. Quanto aos outros acontecimentos, todos culminando no desmaio,
e aos quais não devíamos ser tão sensíveis, não me resta deles na cabeça nada
de inteligível. Se alguém ainda fosse capaz de interpretar risos, julgariam que
estou louco. Esses acontecimentos, às vezes me divirto inventando-os, mas sem
chegar a me divertir de verdade. Sinto-os espiritualizados numa ordem
hierárquica: um mosaico que me oferece uma compreensão intuitiva deles. Eu
mesmo ocupando uma alta posição em tal hierarquia, como FIAT LUX, a mais alta,
como único que não pode ser considerado de uma categoria imperdoavelmente
banal. A essência da minha escrita (eles sabem) é operar, ao preço de uma
tensão mundial ansiosa, a fusão da consciência cósmica com esses mesmos
acontecimentos, que imploram de uma só vez para causarem angústia e refletí-las
em notícias e atos governamentais. Muitos senhores formalmente trajados, sendo
bons observadores, costumam aceitar minha palavra como conclusiva em diversos
aspectos, nas mais altas instâncias de decisão política. Mas perder a
consciência própria para mim é perder pouca coisa. E mencionar meu nome
publicamente é uma maneira infalível de se começar um discussão violenta
consigo mesmo. Talvez eles tenham me golpeado mais de uma vez, recorrendo a
casos sem fim para provar tanto minha eficiência milagrosa quanto minha
inutilidade absoluta. ''Para tipinhos como você '' (disseram) ''''Tudo é muito
fácil. Pode ficar escondido debaixo dos panos. Mas nós temos uma reputação a
zelar. Uma herança política a defender. Uma oposição a derrotar. Isso vai nos
criar problemas (.) '' ;. Bem, isso não teria sido notado direito, mas saberiam
que eu estava sempre rindo. O contrário teria sido menos surpreendente. Sempre
ergo-me , lento, nessas ocasiões, preparando minha imitação de um aristocrata
inglês pronto à ensinar uma lição ao mundo. Por exemplo: de que a chave da
sensibilidade de nossa época, em pleno século XXI, ainda seja um punhado de
obras literárias e filosóficas escritas entre 1915 e 1930. Pois nem o
surrealismo e o existencialismo francês acrescentaram nada às caracterizações
heideggerianas presentes em Sein und Zeit. A imagem definitiva de nossa miséria
social e cultural ainda pertence à descrição da cotidianidade em Ser e Tempo e
aos febris comentários de Walter Benjamin em ''Viagem Através da Inflação
Alemã''. Quanto ao amor, Proust esgotou o tema como um carniceiro maníaco,
fixando para sempre sua Facies Hippocratica. E o que dizer de Kafka e James
Joyce (?) Nos tiraram qualquer possibilidade de descoberta. A literatura que veio depois se limitou a revisitar
atmosferas psicológicas passadas e a registrar ínfimas variações daqueles
temas. A explicação para isso é que as experiências-limite da elite-intelectual
dos anos 1930 deram lugar à experiência das massas. Nos cumes inacessíveis do
pensamento, onde o nada e o misticismo mudo afivelam sua máscara inexpressiva
de olhos chamejantes, o filósofo e o poeta de vanguarda encontravam-se agora na
companhia de uma interminável e barulhenta massa sem autoridade espiritual,
cuja sensibilidade nunca prometeu nada além de grunhidos.
Matheus Dulci, KM
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