sábado, 7 de setembro de 2019

VIAGEM AO MÉXICO, Silviano Santiago (trecho) e algumas do Taraumaras de Artaud no fim


com a combustão da cultura, fronteiras nacionais e intercontinentais,
aboli-las. Como norte, o enorme sonho de um mundo melhor
inventado pela imaginação poética. Entregando-se a profundas
reflexões políticas – inspiradas pelo “sonho”, diz Artaud; inspiradas
pela não existência do sonho, mas pela presença do “sobrenatural”,
diz Cardoza –, os dois supervalorizam o lugar e o papel da cultura na
condução do destino do Homem, vale dizer da Vida, como mediadora
na busca da Utopia socioeconômica.
Escreve Artaud, querendo domesticar e domiciliar as hipóteses
civilizatórias do sonho: “Nous ne savons rien de la civilisation
mexicaine. Belle occasion sans doute pour rêver hypothétiquement”3
.
Escreve Cardoza, afirmando o primado da Vida, negando o pragmatismo
e assegurando o poder infinito das forças sobrenaturais: “No existe el
sueño. Yo puedo afirmarlo porque nadie puede curarme de la vida.
Nadie ni nada. Lo sobrenatural es mi mundo, el mundo del hombre
y su sola razón. Y su sola alegría”.


A astrologia dita o futuro

O retrato nítido e preciso de homem “delgado, eléctrico y
centelleante”, – pintado por Cardoza y Aragón, d’après “El Desdichado”,
de Gérard de Nerval, – contrasta escandalosamente com o autorretrato
otimista que Artaud esboça em carta datada do dia 7 de fevereiro do
mesmo ano e endereçada ao doutor Allendy. Trata-se, possivelmente,
da primeira carta que escreve já na capital mexicana. Tracemos os
antecedentes desta carta para melhor compreender o descompasso
entre o retrato sofrido e o autorretrato iluminado, bem como o contraste
entre os dois.
No dia 10 de janeiro de 1936, antes de tomar no porto de
Antuérpia o navio que o levaria ao México, Artaud escrevera e enviara
carta ao doutor Allendy, em que lamentava não poder ter-se despedido,
como era desejado, dos amigos parisienses e, ao mesmo tempo,
solicitava um favor ao doutor e também astrólogo.

Vous me feriez un immense plaisir, et c’est un service de la dernière utilité
que je vous demande, si vous pouviez consulter mon ciel et tirez de mon
horoscope quelques précisions détaillées sur ce qui m’arrivera là-bas [no
México]. Puisqu’une partie de vos prédictions s’est déjà réalisée. Je pense
que cela doit vous donner une indication précieuse concernant la façon
d’interpréter le reste. Si vous voyez un événement saillant en tant que fait,
évidemment je serai heureux de l’apprendre (...)


Interrompo a frase e a citação e retomo-as em seguida, pois
nesta segunda parte delas Artaud define o modo como compreende a
astrologia:
(...) mais en général vous savez comment je considère l’astrologie: non
comme un moyen de basse divination analytique et objective. Mais comme
une série d’indications intérieures. Des trajets et des modifications affectives.
Une orientation synthétique des vertus des astres. Ce sont ces mouvements
me concernant que j’aimerais apprendre en fonction d’un départ qui s’est
effectué.
Ao final da carta, fornece a data prevista para o desembarque
no México, 8 de fevereiro, e pede ao correspondente para endereçar
a resposta aos cuidados da Légation de France, onde irá buscar o
correio.
Não é de todo artificioso indicar que as previsões astrológicas4
do doutor Allendy estão por detrás da forte carga de otimismo que
alicerça tanto o autorretrato iluminado quanto o projeto políticocultural de viagem ao México. Em anotações do dia 14 de novembro de
1935, que se encontram precedidas e seguidas por notas e esquemas
didáticos sobre várias religiões e vários sistemas esotéricos5
, Artaud
transcreve previsões feitas pelo citado doutor (“Dicté par Allendy”,
eis o que está escrito no cabeçalho da entrada): “Mercure concerne
voyage qui répondra à espèce d’intuition et sentiment occultes
prémonitions. Le voyage se fait à travers difficultés grâce à un effort.
Grande puissance éloquence et persuasion”. Essas anotações otimistas
sobre a necessidade da viagem ao México, e outras mais, substantivam
o papel que a astrologia (e o ocultismo de maneira geral) tinha na
condução da vida de Artaud naqueles anos decisivos.
Poucas folhas depois da passagem citada, Artaud escreve: “si un
homme n’a pas la notion de Vénus, peu importe de savoir quand Vénus
entre dans telle ou telle maison et passe à tel dégré du Zodiaque, etc./
Révolution des astres est un fait d’une cardinale précision.” E depois
de uma leitura dos astros, anota no mesmo maço de folhas soltas:
“Ceci ne règle pas mon tempérament, mais me donne des possibilités
d’agir d’après ce signe, j’absorbe, j’ai des intuitions...”


Apesar de não se ter o texto da carta enviada por Allendy aos
cuidados da Légation de France no México, a resposta de Artaud à
4. Para uma reprodução do
tema astrológico de Artaud
e sua leitura, consultar
Obliques (Paris, n


Os astros ditam o futuro.
A história impõe o presente.
(Artaud vs. Cárdenas)

mesma, datada, como vimos, de 7 de fevereiro, não deixa dúvidas de
que aquela continha bons fluidos. Basta ler as palavras iniciais: “Votre
lettre me bouleverse par son amitié attentive et par l’émouvante
clarté de ses vues, qui rejoint tout ce merveilleux qui m’entoure
étonnament. Pas une de vos paroles qui ne corrobore ce qui m’arrive.”
Com o apoio espiritual das palavras do médico e astrólogo, o poeta
está pronto para enfrentar galhardamente os percalços da viagem a
um país estrangeiro onde espera operar uma urgente transmutação
dos valores ocidentais. O maravilhoso otimismo reinante é tanto
mais afirmativo, porque, durante a curta estadia do navio no porto de
Havana6
, Artaud conhecera um “sorcier noir” que lhe tinha oferecido
uma espada mágica, ensinando-lhe, ao mesmo tempo, o que ele devia
compreender da vida “pour que le monde d’images qui est en [lui]
se décide dans un certain sens”. Em outra carta, Artaud reafirma o
poder dos ritos dos negros cubanos como auspicioso fio condutor de
sua vida futura: “Je ne vais pas au hasard, mais j’ai depuis Cuba un
étrange filon. J’ai une chose précieuse à trouver...”, acrescentando: “Je
suis venu au Méxique pour rétablir l’équilibre et briser la malchance”.
Finalmente, ainda na citada carta ao doutor Allendy, não pode passar
despercebido o fato de Artaud afirmar que tinha se “desintoxicado”7
durante a travessia do Atlântico.


Não falta a Artaud a curiosidade pela história e pela vida
cotidiana na cidade do México. Não falta a Artaud o desejo de
chegar sem nada em cima ao México. Não falta a Artaud o desejo de
conhecer políticos e artistas mexicanos para melhor dialogar com
eles e se integrar a seu modo de vida. Chega a escrever e publicar
uma petulante “Carta aberta aos Governadores dos Estados”.
Cardoza y Aragón surpreende com rara felicidade o papel e o peso
que o real tinha no seu dia a dia: “Vivía tanto en el mundo que se
ahogaba de realidad”. Sem ouvidos para as suas palavras, Artaud
se aproxima do povo anônimo e conversa com qualquer um nas
ruas boêmias e malandras ao redor da praça Garibaldi; entrega-se
como nunca às drogas, chegando a constantes humilhações para
obter o indispensável, e pouco convive com artistas e figuras da elite
mexicana. Desiludido com a pobreza da vida cultural metropolitana,
não falta a Artaud o interesse por conhecer aquilo do México que
escapa à influência europeia. A almejada e desesperada viagem que
fará, ao final da sua estada, ao país dos Tarahumaras confirma o seu
interesse. O melhor amigo de Artaud, Cardoza y Aragón não nos
desmente: “No soy testigo de Artaud en México, calcinado por la
droga y el sufrimiento. No hubo testigo alguno de su perenne vigia,
de su afasia tantálica”. As únicas testemunhas serão os distantes
índios Tarahumaras. Deles, nos resta o silêncio

Falta a Cardoza y Aragón, sobra a Artaud o interesse em intervir
na realidade mexicana. Ele quer transformá-la segundo uma direção
utópica que reanimaria de vida o glorioso passado indígena numa
espécie de redenção da grande destruição feita pelos colonizadores
europeus. Aos olhos dos donos do poder, essa direção parecia
contraproducente e perigosa. No México dos anos 1930 o futuro
pertence ao presente, e o presente pertence ao PRN, então sob as
ordens do presidente general Lázaro Cárdenas. Depois da Revolução
russa e da crise mundial instaurada pela Depressão de 1929, os países
periféricos tomam a dianteira na reforma agrária e comandam o
processo econômico nacional, alicerçando o futuro e robusto Estado
Nação. Implantam políticas de desenvolvimento próprio e soluções a
curto prazo para os problemas sociais. O protecionismo econômico
se alia ao paternalismo social. Os índios tarascos deram o apelido
correto para Cárdenas: Tata [Papai] Lázaro.
Não há dúvidas de que Artaud sabe que está na terra do
historiador e humanista José Vasconcelos, criador dos professores
“saltimbanquis” que, em missões culturais pelo interior abandonado,
falavam aos índios da Ilíada e dos Diálogos de Platão. Artaud sabe
disso e quixotescamente contra-ataca, combatendo a europeização do
índio pela lavagem cerebral.
Essas questões, de maneira implícita e explícita, fazem parte da
sua primeira apresentação pública. Na conferência “El hombre contra
el destino”, proferida no Anfiteatro Bolívar da Escuela Nacional
Preparatoria, Artaud fala primeiro do desconhecimento que o homem
moderno tem do saber, para em seguida afirmar que se alguém falasse,
entre cientistas mecanizados às voltas com os seus microscópios,
de um determinismo secreto baseado em leis superiores do mundo,
despertaria risadas. Artaud é esse alguém. Continua ele:
Quand on parle aujourd’hui de culture les gouvernements pensent à ouvrir
des écoles, à faire marcher les presses à livres, couler l’encre d’imprimerie,
alors que pour faire mûrir la culture il faudrait fermer les écoles, brûler les
musées, détruire les livres, briser les rotatives des imprimeries.


Nessa mesma época, a Confederación Revolucionaria
Michoacana del Trabajo, ainda segundo o mesmo autor, “decidió llevar
a cabo una depuración ideológica dentro del ámbito normalista para
excluir a todos los maestros que carecían de una ‘ideologia avanzada’.”
Por outro lado, como bom discípulo do presidente Calles, Cárdenas
media “el progreso en metros lineales, cuadrados y cúbicos”.
Artaud talvez tenha tido a “buena dicha” de se beneficiar de
um período pacífico na administração Cárdenas. No dia seguinte ao
dia mágico em que chega à Cidade do México, no dia 8 de fevereiro,
o presidente anota em seu diário: “Hoy expedí la Ley de Indulto para
todos los procesados políticos, civiles y militares, cuyo número pasa
de diez mil personas, que han tomado parte en rebeliones o motines
en administraciones pasadas”. Logo depois da chegada de Artaud,
regressam ao país as grandes figuras da oposição. Mas se Artaud se
beneficiou da “paz” foi minimamente, tendo apenas as traduções de
poucos escritos seus aceitos aqui e ali no jornal governista. Na verdade,
Artaud era pouco perigoso e facilmente neutralizável. O mesmo não
ocorria com o antigo mestre do presidente, o general Plutarco Elías
Calles. Este, no dia 9 de abril de 1936, contrariando o texto da “Ley
de Indulto”, é obrigado a partir para o exílio nos Estados Unidos.
Plutarco Elías Calles sabotava o poder presidencial. Antonin
Artaud, “el desdichado”, deixava definitivamente a metrópole para se
embrenhar no distante país dos Tarahumaras na condição semioficial
de “saltimbanco” às avessas. Praticamente o único pedaço de terra
que Cárdenas, durante a viagem a todos os cantos da República
que precedeu a sua escolha como presidente, não visitou. Onde o
presidente não pôs os pés, ali Artaud reinou.

Viagem ao País dos Taraumaras, 
Antonin Artaud






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