Revisitando a obra de Silviano Santiago em busca do tema da leitura, percebo que ele é constante, seja em obras de viés mais ficcional, como Stella Manhattan (1985), seja em obras ensaísticas, como As raízes e o labirinto da América Latina (2006). Todo gesto de abertura será, portanto, arbitrário e substituível, além de operar dentro de um campo que tem recebido atenção nos últimos anos (ver, por exemplo, Silva, 2016). Diante disso, escolho a “Nota prévia” que abre Uma literatura nos trópicos, de 1978, por conta do caráter já canônico desse livro na universidade brasileira. A nota faz o diagnóstico de uma mudança de paradigma na atuação do “intérprete”, que perdeu “a segurança no julgamento” e que agora sabe que seu trabalho é o de “saber colocar as ideias no devido lugar”, “abrindo o leque de suas possibilidades para o leitor”. O intérprete é, em suma, continua Silviano Santiago, “o intermediário entre texto e leitor, fazendo ainda deste o seu próprio leitor”; procura, por fim, “formalizar e discutir, para o curioso, os problemas apresentados pela obra, deixando com que esta se enriqueça de uma camada de significação suplementar e que aquele encontre trampolins menos intuitivos para o salto de leitura”. A interpretação, portanto, é uma atividade que vai de uma leitura a outra, enriquecendo a obra com uma “camada de significação suplementar” no processo (Santiago, 2000, p. 7).
É fundamental também reter a noção de “salto de leitura” proposta rapidamente pelo autor na nota prévia. A metáfora do salto, que pode ser rastreada em Nietzsche ou Walter Benjamin,1 serve para marcar a leitura como atividade que não se quer totalizante ou esgotadora, e sim como movimento de abertura à diferença e o diálogo. A partir de Jacques Derrida e Roland Barthes, já no primeiro ensaio de Uma literatura nos trópicos (“O entre-lugar do discurso latino-americano”), surge a reivindicação da leitura que, “em lugar de tranquilizar o leitor, de garantir seu lugar de cliente pagante na sociedade burguesa”, “o desperta, transforma-o, radicaliza-o e serve finalmente para acelerar o processo de expressão da própria experiência” (Santiago, 2000, p. 20). Adiante, já no fim do ensaio, surge a ênfase em um método de leitura especificamente latino-americano: o escritor dessa região “lê o tempo todo e publica de vez em quando”; “a técnica de leitura e de produção dos escritores latino-americanos parece com a de Marx, de que nos falou recentemente Louis Althusser” (Santiago, 2000, p. 25-26). Marx lê Quesnay, Smith e Ricardo de forma tensa e suspeita, como devem fazer os latino-americanos com os europeus. O corolário dessa cena compartilhada de leitura é que a crítica deve descondicionar o leitor, “tornar impossível sua vida no interior da sociedade burguesa e de consumo” (Santiago, 2000, p. 26).
Retendo esse método latino-americano salientado no ensaio citado (que é de 1971), proponho um salto em direção a As raízes e o labirinto da América Latina, de 2006, livro que reitera e reconfigura tal método. Aqui também há uma nota prévia na qual o autor declara que faz homenagem a Sérgio Buarque de Holanda e a Octavio Paz, “intérpretes da América Latina”, e especifica: “a leitura que se faz de Raízes do Brasil e de El laberinto de la soledad, provocadores do nosso título, é contrastiva e didática. […] importa-lhe menos a erudição disciplinar; importa-lhe mais a perspectiva de análise. A metodologia de leitura” (Santiago, 2006, p. 9). Já de início o projeto se apresenta como uma leitura que corresponde a uma metodologia precisa. Não se trata de esgotar as especificidades de cada obra em uma perspectiva histórica ou mesmo sociológica, e sim produzir um contraste, instaurar uma perspectiva - ou seja, uma nova posição de observação da tradição. Colocando novamente Jacques Derrida em uso, Silviano Santiago chama seu projeto de leitura contrastiva de “narrativa”, na qual “a subjetividade do escritor se oferece como consistência inconsciente ao leitor”, estabelecendo uma relação significante entre as referências (Sérgio Buarque de Holanda e Octavio Paz) que é produzida pela leitura crítica (Santiago, 2006, p. 88).
Além disso, o texto propõe uma leitura crítica da Carta de Pero Vaz de Caminha pelo viés gramatológico de Derrida, mostrando como o sistema semântico instaurado pelo verbo plantar repercute tanto na experiência portuguesa quanto na espanhola.2 A leitura da Carta da parte de Silviano Santiago se articula a contrapelo de uma série de leituras anteriores, especialmente a de Sérgio Buarque de Holanda, mas também a aparentemente neutra leitura de Sílvio Batista Pereira no Vocabulário da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1964. A própria leitura proposta por Silviano Santiago da Carta é um evento que se dá no tempo e que sofre arranjos e modificações. Retornando ao livro de 1978, Uma literatura nos trópicos, especificamente ao último dos ensaios, “Análise e interpretação” (publicado originalmente em 1975), encontramos algumas das referências elencadas até o momento. Em primeiro lugar, o autor retoma Louis Althusser e seu texto sobre as leituras de Marx, agora indicando a fonte, que não era informada em “O entre-lugar do discurso latino-americano” (Lire le Capital). Os críticos literários, escreve Silviano Santiago, pegam de empréstimo a noção de leitura sintomal que Althusser desenvolve a partir de Marx: a leitura que se dá nos lapsos do texto lido, em suas lacunas, desvendando o indesvendável e armando um segundo texto que corre em paralelo ao primeiro (Santiago, 2000, p. 207).
Na sequência do resgate de Althusser, neste ensaio de 1975, surge também a Carta de Pero Vaz de Caminha, requisitada por conta da exposição da noção de “intertextualidade” e do atravessamento de textos no tempo e no espaço: “Tomando como exemplo os poemas de Oswald de Andrade da ‘História do Brasil’ (na coletânea Pau-Brasil), pode-se dizer que o autor da Carta de Pero Vaz Caminha seria tanto este quanto o poeta paulista, os dois, na medida em que um se inscrevia dentro do outro e vice-versa”; com isso, abandona-se “também uma visão cronológica e unívoca do estudo do texto literário ou cultural de modo mais geral”, pois “retomar o texto histórico do cronista” e “apropriá-lo dentro de uma estética do não-sério, do jocoso, é operar um mecanismo de renversement ideológico, que pode ser explicado pela coexistência no mesmo momento escritural de afirmações que se contradizem” (Santiago, 2000, p. 209). Esse tipo de detalhe é o que dá densidade à tessitura de um texto, e muitas vezes só pode ser percebido a partir da convivência intensa com um livro e com os múltiplos fragmentos (não necessariamente coordenáveis ou articuláveis com relação a um todo) que o formam, revisitando-o e relendo-o com vagar.
Nota-se que a reflexão acerca da leitura da Carta de Caminha, no ensaio de 1975, ainda é muito colada ao uso específico que dela faz Oswald. Ao mesmo tempo, porém, reforça a ideia da leitura como fator “descondicionante” (anunciada no ensaio sobre o entre-lugar), agora a partir da noção de “renversement ideológico”. Mas a aproximação aqui do ensaio de 1975 com o livro de 2006 mostra a Carta de Caminha como laboratório privilegiado dessa metodologia peculiar de leitura desenvolvida e defendida por Silviano Santiago. É preciso ainda mencionar que a Carta de Caminha faz outras duas aparições importantes na produção do autor: em setembro de 1998, Santiago apresenta a conferência “Destinos de uma carta” no Congresso 1498-1998: Raízes, Rotas e Reflexões, na Universidade do Minho, depois incluída no livro Ora (direis) puxar conversa! (Santiago, 2006a, p. 229-246); e em setembro de 2014 publica na Folha de S. Paulo o ensaio “Anatomia da formação”, uma longa retrospectiva da sua carreira que lida majoritariamente com suas leituras da Carta de Caminha (Santiago, 2014, p. 4-5).3
SEÇÃO TEMÁTICA: LEITURA E EXPERIÊNCIA
Cenas de leitura em Silviano Santiago
Reading scenes in Silviano Santiago
Kelvin Falcão Klein
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